Nowhere Man
A relação que temos com a cidade pode fazer da vida um projeto animado ou uma vida chata
A relação que temos com a cidade pode fazer da vida da gente um projeto animado, cheio de prazeres e desprazeres, ou uma vida chata e insossa como a do pobre alienado da canção dos Beatles
Caro Paulo,
Até agora não sei o quanto uma cidade pode fazer diferença na vida da pessoa. Mas tenho certeza de que a relação que a pessoa tem com o lugar faz toda a diferença na satisfação que ela tira do dia a dia. Não se trata de fazer sucesso e ter oportunidades numa cidade grande que uma cidade menor não oferece. A internet dá uma boa zerada nessa perspectiva. Estou falando da relação que se tem com o lugar físico, com o sol que bate na janela, com o pássaro que canta nas árvores do bairro, com a umidade da tarde de verão depois da chuva, com a sujeira da rua, com o ar sujo ou limpo que se respira. São experiências sensoriais que afetam o ser humano, não importa se ele está dentro de uma Ferrari, de um táxi, de um ônibus ou se está pilotando uma bike em São Paulo, Itabirito, Nova York, Bangcoc ou Fernando de Noronha, nem se está de férias, trabalhando, roubando ou estudando.
São experiências pessoais e intransferíveis e que, por isso, podem fazer da vida da gente um projeto animado, cheio de prazeres e desprazeres, ou uma vida chata e insossa como a do “Nowhere man sitting in his Nowhere Land making all his nowhere plans for nobody”, da canção dos Beatles.
Acredito que muito da feiura e das disfuncionalidades das cidades, em particular de São Paulo, são consequência da alienação das pessoas e de uma mentalidade de cobrança de direitos e deveres. E não da busca determinada de satisfação de desejos e necessidades. O alienado eu vou ignorar. Os outros dois vale a pena comentar.
A pessoa que, de verdade, vive o lugar cata o papel que jogaram na sua rua e passa a viver no lugar limpo. O cidadão que cobra direitos e deveres espera que o caminhão do lixo passe porque ele está pagando impostos à prefeitura, que deve prestar o serviço de limpeza. Enquanto isso, vive numa rua suja. Catar o papel jogado na rua gera uma satisfação que a pessoa que passa reto nunca vai experimentar.
Rodas de conversa
Um bom exemplo de quem vive o lugar e por isso “faz a hora, não espera acontecer” é a jornalista Carolina Tarrio, que conheci no Conta Aí, uma das atividades da programação da Virada Sustentável, que aconteceu em junho em São Paulo. Conta Aí são rodas de conversa com pessoas que têm feito algo pela cidade. Carolina contou que se mudou para uma casa que ficava na frente de uma praça abandonada. Indignada com o abandono, foi falar com os vizinhos, de porta em porta, e acabou reformando a praça. Bravo, Carolina! Bom para você, para seus vizinhos e sua cidade.
Não quero desqualificar as instituições e o exercício da cidadania que as fortalece. Mas quero mostrar que a vida das pessoas funciona numa urgência que não combina com a lentidão das instituições. E que, quando a gente se acomoda no tempo das instituições, nossa vida pessoal se perde entre as reivindicações e os protocolos, nossa sensibilidade vai se anestesiando, nossa indignação vai diminuindo, a vulgaridade vai tomando conta de tudo e a insatisfação vai se tornando normal.
O que está em risco não é a cidade que, de um jeito ou de outro, no curso da história acaba se resolvendo, mas a satisfação que tiramos da nossa própria vida. “You don’t know what you’re missing”, insistem os Beatles com o pobre alienado Nowhere Man.
Eu, assim como a Carolina, me esforço e tenho conseguido fazer de São Paulo um lugar legal para eu viver. Mas... não sei se São Paulo é uma cidade boa para viver...
Meu abraço, saudades.
Ricardo
*Ricardo Guimarães, 64, é presidente da Thymus Branding. Seu e-mail é ricardoguimaraes@thymus.com.br e seu Twitter é twitter.com/ricardo_thymus