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Vou conversar, pela Trip, com o Coronel Pimentel, principal fonte do filme Tropa de Elite

por Luiz Alberto Mendes em

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Estou embarcando hoje para o Rio de Janeiro. Amanhã vou participar de um debate, pela Revista Trip, com o ex-policial militar, acho que agora é Coronel Pimentel, que criou o livro que vai dar origem ao filme “Tropa de Elite”. Não sei bem o que se espera de mim. Assisti o filme novamente para ter uma visão mais fresca e, sinceramente, há que por muitos reparos, mas até que o filme  foi bastante razoável. Há uma consistência. Vou tentar debater o que se afirma no filme de que aquele que fuma um baseadinho é responsável por toda desgraça causada pelo tráfico. Essa, para mim, é a maior contradição do filme. Parece-me um raciocínio reducionista. Em momento algum no filme são citados aqueles que financiam a produção e o tráfico da droga. Para mim esses são os verdadeiros culpados. Hoje cerca de 1,5 trilhão de dólares ilegais circulam pelos mercados de capitais. Dinheiro proveniente principalmente do tráfico de drogas e de armas. Todo sistema financeiro e econômico esta envolvido, mesmo porque esse dinheiro nem existe no papel, somente virtual. Como movimentá-lo senão através do citado sitema? Há 10 anos o montante, segundo a ONU, de dinheiro que arrecadava o tráfico de drogas era cerca de 360 bilhões de dólares. Hoje é de cerca de 900 bilhões. Quase triplicou. Mas como lavar esse dinheiro todo sem a cumplicidade de todo sistema econômico/financeiro? É antieconômico produzir 10 quilos de cocaína. A droga só é viável em grandes quantidades. Então exige alto financiamento para mão de obra, produtos para preparar o terreno (a acidez da terra tem que ser controlada), para a plantação, cuidados, colheita, transporte (tudo isso muito caríssimo por conta dos riscos), até chegar às mãos do traficante. Quem tem dinheiro para financiar toda essa produção? Somente o banco ou o sistema financeiro. Ninguém mais trabalha com capital pessoal, o sistema incentiva o endividamento para que continue a virar produtivo. Quero discutir isso. Acho que esse debate foi provocado por conta da liberalização da maconha na Argentina, depois conto para vocês, mas vai sair em destaque na Revista Trip do mês que vem.

 

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                         DECEPÇÃO

 

Uma repórter me perguntou sobre o que mais me decepcionou ao chegar aqui fora, depois de haver ficado mais de trinta anos aprisionado. A  resposta demandou explicação prolongada.

Ás vezes nossos gestos são rudes e ocos, vendavais de nossas inquietudes. Aos onze anos de idade comecei a fugir de casa. Pedia comida nos restaurantes com mesas nas calçadas. Depois, já criminalizado e transformado em infrator nas instalações do Juizado de Menores (FEBEM da época), parecia não haver mais volta. Eu era apenas um menino de treze ou quatorze anos de idade, ingênuo e bobo. 

As consequências não se fizeram por esperar. Havia imenso vazio e a sensação de haver perdido parte importante da existência. Mergulhei no dementado submundo do crime em busca de embriagues dos sentidos, até que, aos dezenove anos fui preso para nunca mais.

Contávamos mais que centenas, embora eu só lembre dezena. A idade variava entre doze e dezesseis anos. O instante, esse carcereiro cego, determinava. A polícia exterminou a maioria de nós. Não nos entregamos, resistíamos como flores em permanente primavera. Éramos fruto de uma cultura voraz que nos devorava até os ossos. Sempre achei que o preço foi caro demais. Pagava a prazo uma vida que nunca fora inteiramente minha.

Quarenta anos depois, mergulho no tempo e percebo que até fomos privilegiados. Tivemos uma pequena infância. Eu cacei passarinhos, nadei em lagoas, pesquei, joguei bola, andei de estilingue no pescoço; joguei bolinha, pião, figurinha a bafo; brinquei de mãe-da-rua, mana-mula, cabra-cega, de pique; empinei pipa, maranhão, raia e peixinho. Cheguei até concluir o primário e fazer primeira comunhão.

Logo que sai da prisão, fui fazer reunião com pessoas envolvidas em ONGs, em uma casa enorme. Enquanto esperava pessoas, vi umas meninas pequenas passando por mim com bebês no colo. Depois vi algumas de barriga enorme. Nisso chegaram as pessoas para a reunião. Perguntei, meio assustado, o que era aquilo. A resposta me deixou estarrecido. Aquelas eram as tais “meninas de rua”, grávidas ou recém paridas. Mas eram jovenzinhas cuja fragilidade, com toda aquela barriga, comovia até as lágrimas. Os braços escuros da dor tornavam a me envolver. Se me contassem, eu não acreditaria.

Lancei um olhar silencioso à vida. Meninas a parir. Meninas a parir meninas. Meninas sem pais. Então caiu a ficha: As crianças já estão nascendo nas ruas. Estávamos na ONG Santa Cruz. A maior parte delas abandonavam as crianças e voltavam para as ruas. Eram crianças, sem responsabilidade como tais. Existia outra casa somente para abrigar esses bebês. Estes estarão protegidos e amparados. E aqueles que nem se sabe, que estão longe de serem atendidas, quantos serão?

Quatro décadas se passaram e ficou muito pior. Hoje os meninos de rua já nascem nela. Vivem aos bandos, já não mais apenas pelas ruas centrais da cidade grande. Somam milhares, nem se sabe quantos. Eu os vi nos bairros periféricos e nos subúrbios. Assim como os vejo quase todos os dias pelas ruas centrais de São Paulo, dormindo nas calçadas. E já não são meninos apenas. As meninas hoje são um grande contingente. Eu as vi com suas barrigas maior que elas, ou com seus nenês como grandes bonecos em seus colos reduzidos.

Como é que pode uma comunidade que se diz humana se permitir a fatos tão vergonhosos quanto estes? Marchamos em direção ao nada, como a língua de um réptil a colear, úmida. A realidade é simples e não engana embora vivamos a impossível missão de cegar os espelhos. Vamos pagar caro demais por tudo isso, podemos ter certeza.

 

Luiz Mendes

Composto em l0/05/2005

Reescrito em 09/09/2009

 

 

 

 

   

 

 

 

 

 

 

Arquivado em: Trip