Nós vamos invadir sua praia

Fomos a um acampamento do MST no CE para ver por que os sem-terra puseram os pés na areia

por Caio Ferretti em

Há algo de estranho em um dos 900 acampamentos mantidos atualmente pelo MST no Brasil. Se levarmos ao pé da letra o significado da sigla – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra –, chega a ser contraditório considerar o acampamento como parte da organização. Primeiro, porque nenhuma família está lutando para conseguir um espaço legalizado de terra. Isso eles já têm. Mas sobretudo porque os acampados estão consideravelmente longe de uma área que possa ser chamada de rural. No acampamento Maceió, curiosamente localizado na praia de mesmo nome no Ceará, é na areia que estão fincadas as vigas de madeira que sustentam o teto das famílias. Tradicionalmente do campo, o movimento foi parar no litoral.

A luta na praia do Maceió vai muito além da disputa por alguns hectares de terra – ou, no caso, de areia. O que fez a bandeira do MST balançar nas dunas do Ceará foi algo mais simbólico, mas não menos importante. Ali, segundo o movimento, as famílias passam dias acampadas para garantir que a cultura de praia mantida por eles há décadas não corra o risco de sumir, com a construção de um megaempreendimento turístico previsto para ser erguido no local. Para eles, é uma luta pela manutenção de uma cultura enraizada, e não por um pedaço de terra. “Esse tipo de construção quebraria totalmente nossa relação com a praia. As tradições daqui seriam enterradas”, resume a acampada Maria Conceição de Souza. E vai além: “Gostaria que meus filhos também crescessem aqui, livres, sem essa questão de...”. Sem terminar a frase, Maria abaixa a cabeça e fica alguns segundos em silêncio, mas continua: “É muito difícil pensar como ficaria a questão de droga, de prostituição. Eu só queria que meus filhos continuassem com a nossa tradição e com a nossa liberdade de poder vir à praia a qualquer hora”.

A cultura de praia citada pelos moradores do Maceió é bem diferente da conhecida em paraísos litorâneos do Sul, Sudeste e até mesmo do Nordeste já entregues à ocupação turística. Bastam algumas horas por ali para perceber que o essencial para eles é poder sair de barco para uma pescaria e ter a oportunidade de dar um mergulho no mar. Simples, mas o suficiente para uma comunidade que luta exatamente para não perder a simplicidade. “Lazer pra mim é isso aqui”, indica o pescador Chico Gaspar, de braços abertos para o mar. “É poder respirar um ar puro, poder tomar um banho de mar na hora que eu quiser, utilizar a praia nos horários de maré baixa para jogar bola, fazer um passeio de jangada.... Isso é lazer.” Em um intervalo de pescaria, quando reportagem e pescadores aproveitaram para dar um mergulho, Chico soltou: “Depois desse mergulho vocês vão ficar uma semana tranquilos lá em São Paulo. Até pra gente que mora aqui lava a alma”. Para o futuro, Chico pensa em organizar eventuais competições de regata entre os pescadores.

PIRATA À VISTA
A relação entre os moradores da comunidade do Maceió e a praia é bem mais antiga do que essa ocupação atual. A região foi uma das primeiras faixas litorâneas a ser atendida pela reforma agrária no início da década de 80. Na época, quase 6.000 ha foram cedidos pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) às famílias locais, dando origem ao assentamento Maceió, que fica a ­
2 km da praia. No mesmo período, o empresário português naturalizado brasileiro Antônio Júlio Trindade, dono do famoso Pirata Bar em Fortaleza, comprou uma faixa de areia localizada exatamente entre o assentamento e a praia. Tudo caminhou tranquilamente até 2002, quando Trindade começou a esboçar os primeiros projetos para construir um empreen­dimento turístico em suas terras.

A notícia caiu como uma bomba para os assentados. Se a propriedade de Júlio separava o assentamento da praia, como ficaria o acesso deles ao mar? De que forma aquela construção transformaria seus costumes? Foram essas dúvidas que fizeram a temerosa população do assentamento se unir ao MST para criar, há dois anos, o inusitado acampamento a poucos metros do mar, impedindo qualquer início de obra do empreendimento.

Vendo o circo armado, Trindade, mais conhecido como Pirata, não vê motivos para a preocupação da comunidade. Com uma pilha de documentos em mãos para provar que nunca agiu contra a lei ou a natureza, o empresário de 63 anos, com cabelos e bigode compridos, aparência digna de seu apelido, recebeu a reportagem em seu escritório de Fortaleza e destacou o acordo que fez com a Federação dos Pescadores do Estado do Ceará. “Não estou atacando o modo de vida de ninguém. O acordo com os pescadores diz que o empreendimento vai incentivar atividades que valorizem a cultura e a identidade regional. Sou um aventureiro, mas não vou brincar com a legitimidade de um povo.”

MALOCA ENGAJADA
Embora estejam instalados em um local paradisíaco, com uma vista privilegiada do oceano, a situação dos acampados não é exatamente um sonho – como a Trip constatou nos dois dias em que dormiu debaixo do mesmo teto que a comunidade. A impressão é a de que o acampamento se assemelha às malocas indígenas. Feita com vigas de madeira cobertas com folhas de palmeira seca, a estrutura de mais ou menos 16 x 6 m, sem divisórias, abriga de 20 a 30 famílias por vez durante o dia. Em uma metade ficam penduradas as redes que servem de cama para muitos deles à noite. Vinte estavam armadas na madrugada em que a reportagem dormiu na barraca, o suficiente para que um simples balanço resultasse numa sequência de esbarrões laterais. Na outra metade é feito de tudo. Desde reuniões para discutir o futuro do acampamento até fogueiras para assar o peixe que servirá de refeição – sempre pescado na hora.

Do lado de fora, um pequeno cercadinho quadrado, também feito com folhas de palmeira, garante a privacidade necessária para servir de banheiro. Diferentemente das tradicionais instalações do MST, a única enxada presente no acampamento do Maceió fica nesse cercado. Além do rotineiro banho de mar, muitos fazem questão de usar esse banheiro para se lavar com água doce no fim do dia. Para isso, enchem baldes em uma bomba d’água instalada ao lado do acampamento.

Mas o detalhe que mais chama a atenção vem do alto, do teto da barraca. Além da Lua, o que ilumina a noite no Maceió é uma pequena lâmpada que funciona à energia solar. Toda a simplicidade do acampamento se contrapõe à moderna instalação criada para transformar a luz do Sol em energia elétrica. A lâmpada só se apaga quando todos dormem – e isso não acontece tão cedo. Era pouco mais de 23h30 quando o silêncio finalmente imperou no ambiente. Foi possível perceber alguns acampados levantando de madrugada para fazer vigília nos arredores. Assim mesmo, antes das 6h nenhuma rede mais estava ocupada, já que o melhor horário para pescaria é ao amanhecer. Muitas vezes os pescadores passam até sete dias inteiros em atividade no mar, distantes até 100 km da costa.

Ninguém cogita reclamar das condições do acampamento. Pelo contrário, agradecem pelo privilégio de ter uma praia daquelas ao alcance. Messias Souza dos Santos, 19 anos, reconhece as vantagens do local. “É muito prazeroso passar o dia aqui. Não só pelo lazer, mas para ajudar a comunidade em defesa de sua cultura e sua raiz. Em outros acampamentos que a gente vê, no sertão, não dá pra se divertir como nós. Aqui é uma luta que chama mais a atenção do jovem, porque estamos na praia. E jovem gosta muito de praia. É bem interessante que nós participemos disso.” Interessante ou não, a verdade é que a juventude é minoria por ali. A maior parte é de adultos acima dos 35 anos ou crianças abaixo dos 15, presentes apenas para acompanhar os pais. Entre os jovens, o tradicional clima de azaração na praia é quase inexistente. “Todo mundo se conhece desde pequeno na comunidade, crescemos como uma família”, explica Messias.

A proximidade do acampamento com o assentamento, onde todos têm residência fixa, facilita e muito a vida dos acampados. E um sistema de rodízio foi estabelecido para que todas as famílias engajadas ficassem a mesma quantidade de tempo na vigília da praia.

Os acampados insistem que não vão tirar o pé da areia enquanto houver qualquer chance de construção de um empreendimento turístico ali. Vestidos com bonés e roupas do MST, contrastando com a paisagem litorânea, eles mantêm a rotina de pescadores e nativos enquanto podem. E o jovem Messias, como se pregasse a palavra do profeta, finaliza: “Isso aqui é uma tradição muito antiga que a gente não pode deixar morrer. É nossa cultura criada na nossa praia”.

Crédito: Fernando Cavalcanti
Crédito: Fernando Cavalcanti
Crédito: Fernando Cavalcanti
Crédito: Fernando Cavalcanti
Crédito: Fernando Cavalcanti
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Crédito: Fernando Cavalcanti
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Arquivado em: Trip / Ativismo / Comportamento