Ninguém é de ninguém: a nova realidade
Inspirada em uma capa da clássica revista em 1966, Trip aposta em nove novos artistas essenciais da música brasileira
Inspirada em uma capa da clássica revista em 1966, Trip aposta em nove novos artistas essenciais da música brasileira e constata que a cena atual é quase uma orgia: todo mundo toca com todo mundo e o prazer é geral
Esqueça as paradas de sucesso, os prêmios que louvam os medalhões de sempre, os ganhadores de Disco de Ouro e aquele papinho “ah, mas a cena de hoje não tem mais um Chico, um Caetano...”. Conversa. O riquíssimo panorama musical contemporâneo não tem nada a ver com o que rolou nos anos 60. São outros públicos e propostas, outro jeito de a música chegar ao ouvinte, os grupos não são hermeticamente fechados e se abrem para novas combinações – e não há um inimigo comum, fardado e censor, a combater.
Mas existe um adversário invisível: a multiplicação e a dispersão de sons e imagens. Qualquer músico pode criar uma página na rede, encontrar um buraco para tocar, bancar um CD bacana por R$ 3 mil. Talvez por isso a Trip tenha tido tanto trabalho para apostar nos nove carros-chefe da nova geleia geral brasileira – inspirada em uma clássica reportagem da revista Realidade, que em 1966 cravou o mesmo número de jovens talentos musicais em sua capa. Chico Buarque tinha apenas 23 anos e era conhecido pelo hit “A banda”; Caetano Veloso e Gilberto Gil, ambos com 24, ainda não haviam dado a cara nos festivais da canção.
Se a Realidade acertou quase tudo, Trip, através de um colegiado e de muitas horas de discussão, arrisca estes Nove Novos com firmeza. Afinal, embora distantes do público de massa, eles são figurinhas carimbadas para quem acompanha movimentações de palco e MySpace. Todos são compositores; alguns ainda burilam o segundo álbum, outros são mais rodados – e, dos nove, só Thalma de Freitas tocou com todos.
“Nenhum homem é uma ilha, todo de si mesmo; cada homem é um pedaço do continente, uma parte da terra principal”, escreveu em 1624 o poeta inglês John Donne. O verso ilumina nossa busca pelos homens arquipélago dos anos 00, no lugar dos músicos estelares dos anos 60. Hoje, quem se isolar dos aspectos menos artísticos de seu trabalho some. Não funciona ficar no canto criando, à sombra de uma gravadora ou de um produtor. O artista precisa se mover para todos os lados, às vezes se ocupando de tarefas nada musicais – pensar a arte do CD ou do site, cuidar da produção de um show ou da agenda de um evento.
Agora que ficou combinado que o CD é suporte para o trabalho ao vivo, antes meio que fim, ficou mais liberado todo mundo tocar com todo mundo. Seja solidário ou morra: a cena musical deriva concretamente da dinâmica das redes, que se tornaram o novo paradigma da comunicação (online e interativa, da internet e dos videogames), substituindo o de difusão (próximo dos festivais de TV e dos programas de rádio). Faz sentido a aproximação de artistas e bandas de gêneros musicais distantes. Isso não tem nada a ver com movimento: a liga é mais forma que conteúdo, mais modo de trabalho que programa artístico.
O esquema “banda trabalha seu disco com a gravadora e sai em turnê” não funciona mais. Embora os álbuns sejam fundamentais à coerência de cada projeto, grupo ou artista solo, há tanta coisa rolando entre cada lançamento que se poderia dizer: o mais bacana é a obra em progresso. Entre álbum e outro surgem parcerias inusitadas, projetos paralelos que ganham força e roubam os holofotes. Assim como não existem gêneros definidos, não há polos centrais que aglutinam coadjuvantes ao seu redor. Como em um filme do Quentin Tarantino ou em um livro do Roberto Bolaño, um personagem secundário em uma cena pode ser o principal narrador na seguinte e vice-versa.
O panorama musical dos anos 00 é fragmentário, interdependente, contextual. Daniel Ganjaman, do Instituto, reflete: “Não existe entre nós essa ideia de movimento; são diversas movimentações acontecendo ao mesmo tempo, para todos os lados, entre as mesmas pessoas e outras novas”. Rômulo Fróes teoriza: “Agora é que está finalmente acontecendo a tropicália. A ideia de que todos iam criar tudo, apresentada pelos tropicalistas, só se realiza plenamente na nossa era”. Seja bem-vindo.
/Troca-troca/
Conheça a rede de colaborações dos nove artistas selecionados pela Trip com outros 66 músicos
CATATAU
Céu: ele toca na faixa “Espaçonave” do disco novo dela / Cidadão Instigado: líder da banda / Ganjaman: tocou no disco Método tufo de experiência (2005), do Cidadão Instigado / Instituto: foi membro do coletivo e participa de seus shows / Instituto Racional: músico do projeto / Kassin: participa da faixa “Recomeçar”, do disco novo de Catatau / Otto: Catatau tocou por oito anos na banda dele / Rodrigo Amarante: dividiram o palco em show do Cidadão Instigado / Rômulo Fróes: Catatau participou do show Tudo de novo, organizado por Rômulo / Tatá Aeroplano: Catatau fez os arranjos e Tatá as letras de um projeto especial / Thalma de Freitas: tocou em show solo dela
CÉU
Apollo 9: ela cantou três músicas no disco Res inexplicata volans / Curumin: baterista da cantora em turnê pelos EUA / Instituto Racional: participou de show do coletivo criado por Ganjaman / Junio Barreto: compôs “Doce Guia”, que ela canta no disco do 3NaMassa / Kassin: trabalharam juntos no tributo Samba Soul: Red hot organization / Sonantes: participa do projeto formado por Gui Amabis, Rica Amabis, Dengue e Pupillo / Thalma de Freitas: gravaram juntas “Bubuia”, no novo disco de Céu / 3NaMassa: ela canta uma música no disco e participa dos shows do coletivo
GANJAMAN
BNegão: fizeram música para o disco Enxugando gelo, de BNegão, que é membro do Instituto Racional / Curumin: parceria no disco Japan pop show, de Curumin / Forgotten Boys: Ganja produziu três discos da banda / Hélio Flanders: fizeram shows juntos / Instituto: integrante do núcleo formado com Tejo Damasceno e Rica Amabis / Instituto Racional: criou o projeto de shows com convidados cantando Tim Maia / Kassin: os dois desenvolvem projeto com Maurício Takara / Marcelo Camelo: Ganja fez a engenharia de som do DVD ao vivo de Camelo / Maurício Takara: parcerias no disco Coleção nacional, do Instituto / Nação Zumbi: Ganja produziu metade do disco Nação Zumbi e tem parcerias com a banda em trilhas sonoras / Otto: dirigiu shows do cantor e participou das gravações de vários discos / Planet Hemp: foi tecladista e guitarrista da banda / Racionais: gravou e mixou o disco Nada como um dia após o outro dia / Sabotage: produziu disco do rapper e trabalha na produção de um CD póstumo / Thalma de Freitas: tocou no EP da cantora, que integra o Instituto Racional
HÉLIO FLANDERS
Mallu Magalhães: formaram o Overcoming Trio com Zé Mazzei / Tatá Aeroplano: fizeram shows juntos no projeto Jagunços Virtuais / Thalma de Freitas: ele compôs “Mar” para ela, ela compôs “Sol e mar” para ele / Thiago Petit: Hélio cantou em show de Thiago
JUNIO BARRETO
Gal Costa: gravou a música “Santana”, composta por Junio / Lanny Gordin: regravaram “Onde eu moro passa um rio”, de Caetano Veloso / Nação Zumbi: participou da turnê Fome de tudo e compôs a música “Toda surdez será castigada” para a banda / Otto: Junio tocou em shows do cantor / Thalma de Freitas: ele tocou no show do projeto solo dela / 3NaMassa: compôs “Doce guia” e “Morada boa” para o projeto / Vanessa da Mata: ela canta a música “Oiê” no show dele
KASSIN
Adriana Calcanhoto: compuseram juntos “Quando Nara ri” e “Semióticos!” / Jorge Mautner: produziu o disco dele com o Caetano / Los Hermanos: produziu e tocou baixo em dois discos da banda / Mariana Aydar: produziu o último disco da cantora / Orquestra Imperial: integrante do conjunto / Rodrigo Amarante: participa do disco do Kassin +2 / Thalma de Freitas: ele participou do EP dela, ela participou do disco dele / Vanessa da Mata: compôs com ela a música “Pirraça”
RÔMULO FRÓES
Andreia Dias: gravou “Uva de caminhão” em disco dele/ Curumin: tocou em dois discos e vários shows de Rômulo / Guizado: participou do show Tudo de Novo, organizado por Rômulo / Lanny Gordin: participou de dois discos e vários shows de Rômulo / Mariana Aydar: Rômulo compôs “Nada é disso pra você querer” para Mariana, ela cantou “De Adão pra Eva” em CD dele / Nina Becker: ele compôs a música “FlorLanny Gordin: vermelha” para o novo disco de Nina, ela cantou as faixas “Astronauta” e “Ninguém liga” no CD dele / Tatá Aeroplano: no novo disco de Rômulo, Tatá gravou “Para fazer sucesso” / Thalma de Freitas: ele compôs a música “Uma outra qualquer por aí” para Thalma
TATÁ AEROPLANO
Apollo 9: Tatá fez as letras para projeto produzido por Apollo / Cérebro Eletrônico: banda de Tatá / Dudu Tsuda: tecladista do Cérebro Eletrônico e do Jumbo Elektro / Hélio Flanders: shows juntos no projeto Jagunços Virtuais / Jumbo Elektro: banda de Tatá / Júpiter Maçã: atuou no filme Apartment Yet, de Júpiter / Thiago Petit: produziu duas faixas para o disco de Petit / Tiê: cantou a música “Chá verde” no CD dela
THALMA DE FREITAS
Apollo 9: cantou em shows do produtor / Domênico: ela gravou a música “Sincerely hot” para o álbum Domênico +2 / Dudu Tsuda: ele tocou no Casio Nights, projeto solo dela / Laércio de Freitas: o pai de Thalma toca no EP da filha / Orquestra Imperial: integrante do conjunto / 3naMassa: cantou “Eladeirada” no disco coletivo
MULTITAREFA
Apesar dos 32 anos, o produtor, multi-instrumentista e compositor Daniel Ganjaman, irmão de Fê Sanchez (CPM22) e Maurício Takara (Hurtmold), é macaco velho nessa turma: começou aos 15. “Acredito que uns cem álbuns tenham passado pelo nosso estúdio, o El Rocha”, conta o tecladista e guitarrista do coletivo Instituto – praticamente um resumo desta matéria, tanta gente que aglutina. O paulistano produziu Racionais, MV Bill, Nação Zumbi e, além de preparar o novo do coletivo e finalizar um inédito de Sabotage, já pensa em projeto solo. “Já fui mais workaholic, mas agora tô dando uma parada, senão o bicho pega.”
VERDE
“Hoje os grandes artistas não estão nos grandes estádios”, afirma o baixinho Hélio Flanders, o mais jovem dos Nove: tem 24 anos. Paranaense de Londrina, Helinho surgiu em Cuiabá à frente do Vanguart, banda agora residente em São Paulo. Estourou nacionalmente com “Semáforo” e é um dos links mais precisos entre folk rock, pop indie e música brasileira – parceiro da chanteuse Cida Moreyra e de Mallu Magalhães no Overcoming Trio, o mini-Dylan tem tocado nos shows uma versão poderosa de “O mar”, de Dorival Caymmi.
SAMBISMO
“Pragmático e nada programático”, assim o paulistano Rômulo Fróes define o panorama. Aparentemente um sujeito cerebral (é assistente do artista plástico Nuno Ramos, seu letrista), em seus três álbuns Rômulo cantou sambas de uma melancolia negra, prima do melhor Nelson Cavaquinho. Muito inteirado na cena (“o artista tem que conhecer desde a melhor corda de cavaquinho até os meandros da lei Rouanet”), avisa: “A gente precisa sempre inventar uma coisa, disco, show, projeto. Senão, some”. Apesar disso, acredita que “a cena se sedimentou”.
MUSA
Ela surgiu há quatro anos fazendo a festa dos jornalistas apaixonados por trocadilhos e belas cantoras. Um Grammy e uma filha depois do elogiado disco de estreia, Céu burila o segundo álbum, que tem entre as participações ilustres as últimas viradas do baterista Gigante Brasil (Itamar, Caetano, Gil). Acha que a cena remete aos encontros do começo dos anos 60, antes que fosse moldada a atual MPB: “A galera é muito quebra-galho um do outro”, diz Céu, que incluiria o baterista Pupillo entre os Nove Novos – e quer um dia compor com Zeca Pagodinho.
ZÉ-DOIDIM
Fernando Catatau diz que juntaria Marcelo Jeneci, Curumin, Edgard Scandurra e Chico Salém nesta foto dos Nove. Embora celebrado pelo seu heroísmo guitarrístico, o cearense de Fortaleza é um agregador: toca no Instituto Racional, acompanhou Otto, sonha um projeto com Siba e a Fuloresta do Samba, acabou de produzir o álbum de Arnaldo Antunes e finaliza a aguardada terceira obra do Cidadão Instigado, com as novas aventuras de seu personagem Zé-Doidim.
DIVA
Única figura dos Nove Novos a tocar com todos os outros oito, a cantora, modelo e atriz carioca Thalma de Freitas se define: “Sempre quis ser parte de uma banda, não gosto de ser solo”. Ao lado de Nina Becker, a filha do maestro Laércio de Freitas integra a Orquestra Imperial; ao lado de BNegão, puxa os refrões do projeto Instituto Racional, que toca clássicos de Tim Maia; e apruma as canções de seu projeto Casio Knights, em que improvisa sobre beats de brinquedo.
MANEIRO
Egresso do lendário Acabou La Tequila, onde foi parceiro de Nervoso, o carioca Kassin une na boa as pontas entre underground e mainstream. Vai do low-fi de seu solo Artificial à produça responsa de Caetano e Jorge Mautner, é um dos síndicos da carnavalesca Orquestra Imperial e lapidou discos de Los Hermanos e Mariana Aydar. Mesmo assim, ele não posa – abriu um sorriso infantil quando soube, pelo repórter, que Erasmo havia elogiado sua guitarra: “Sério? Puxa, que maneiro!”.
VOADOR
No dia em que Tatá Aeroplano posou como cover de Magro do MPB-4 (embora todos dissessem que está a cara do Ronnie Von), ele subiria ao palco para dois shows seguidos. Com o Cérebro Eletrônico, banda elogiada pela crítica com o álbum Pareço moderno, e com o Jumbo Elektro – em menos de duas horas, passou do tropicalismo elegante da primeira para o embromation escrachado da segunda banda. O cantor e compositor toca em mais uns três grupos, participou do álbum de Rômulo Fróes e, para levar a vida, é também DJ e curador de mostras de cinema. Sobre a lista da Trip, ele diz: “Acho que nessa prova dos 9 está faltando o Júpiter Maçã”.
DEVAGAR
De sosseguinho, o afropsicossambista Junio Barreto vai cavando seu latifúndio na MPB. Da turma o mais tiozão – calibre 45 –, Juninho assistiu à chegada do manguebit do camarote natal em Caruaru (PE). Seu elaborado e preguiçoso método de compor só fez circular a obra nos anos 00: até então era quase anônimo, embora canções como “Qual é, mago?” fossem tão conhecidas que se acreditava serem de tradição popular. Enquanto promete para o fim de 2009 o esperado segundo álbum, Junio vai sendo gravado por Gal Costa, Vanessa da Matta, Céu, Mariana Aydar, entre muitos outros.
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