Nem tão novo assim

Movimentos maiores que a Primavera Árabe aconteceram quando não havia internet

por André Caramuru Aubert em

Exagera quem afirma que a Primavera Árabe só aconteceu por conta das novas tecnologias de informação. Claro, elas ajudaram. Mas movimentos muito maiores aconteceram quando não havia internet. Exemplos? A queda do Muro de Berlim e o colapso soviético

Sentado para escrever, olho a estante e, sem querer, meus olhos se fixam na lombada de Palavra nova dos tempos novos, do líder integralista brasileiro Plínio Salgado (editora José Olympio, 1936). Se você passa os olhos por esta coluna há algum tempo, talvez já tenha notado que eu nutro uma antipatia especial pela palavra “novo”. É que poucas sofrem tanto abuso quanto essa. Tanto na publicidade quanto na política, quando se afirma que algo é novo, em geral, é o contrário. E, mesmo quando é novo de fato, isso não quer dizer que seja bom. Quando ouço falar em novo ativismo político, de cara já implico. O livro de Plínio Salgado serve de exemplo triplo para o que estou dizendo: a palavra não era nova, os tempos não eram novos, as ideias não eram boas.

Quando a web começou, me entusiasmei com o potencial revolucionário da rede. Fui contaminado pelo discurso dos gurus daquela fase, gente como Nicholas “Vida Digital” Negroponte (o fundador do Media Lab), Seymour “Ciberpedagogia” Papert e Howard “Comunidades Virtuais” Rheingold. Cada edição da revista Wired era ansiosamente aguardada e logo devorada. Era fascinante a possibilidade de disponibilizar quantidades gigantescas de conteúdo grátis para todo mundo; de se comunicar de graça com qualquer um, a qualquer hora, em qualquer lugar; de ensinar e aprender a distância; e, mais do que tudo, de democratizar a produção do conteúdo: qualquer pessoa poderia publicar seu livro, exibir seu filme, divulgar sua música, livremente e sem intermediários.

Mas a fase romântica durou pouco. Logo vieram os ternos, as gravatas, as ações em bolsa e a bolha das pontocom. O grande capital incorporou os sonhos libertários, e os tradicionais produtores de conteúdo na mídia impressa e televisiva logo tomaram conta da web também. O que era novo parecia ter ficado velho rapidinho. Apesar disso, muita coisa mudou. A indústria fonográfica implodiu e precisou se reinventar; a Wikipedia e o Projeto Gutenberg, ainda que imperfeitos, de fato ajudaram a democratizar o saber; o Twitter mostrou, na Primavera Árabe, que pode ser mais do que um veículo para “grandes egos, poucos caracteres”; a Amazon começou uma transformação no mercado de livros que ainda não se sabe onde vai parar. E eu poderia escrever mais um monte de exemplos, para terminar com a menção aos também numerosos movimentos de mobilização política que, afirma-se, não teriam sido possíveis sem a internet. Occupy Wall Street, a mencionada Primavera Árabe etc. Quer dizer então que a palavra “novo” está redimida?

PRESSÃO POPULAR

Não está, não. Embora admitindo que houve mudanças, e que muitas delas são positivas, continuo achando que se abusa do termo. Exagera quem afirma que a Primavera Árabe só aconteceu por conta das novas tecnologias de informação. Claro, elas ajudaram. Mas movimentos muito maiores e mais improváveis aconteceram quando não havia internet. Exemplos? A queda do Muro de Berlim no fim dos anos 80 e o colapso soviético no início da década de 90; antes disso, a revolução que instalou aquele regime em 1917; antes disso, o movimento abolicionista britânico no começo do século 19 (750 mil assinaturas em 1814).

Assim como nos exemplos mais antigos, as ditaduras árabes estavam podres por dentro, e o fator fundamental para a mudança foi a velha pressão popular. Nenhuma tecnologia é revolucionária por si só. Plínio Salgado, no livro a que me referi acima, convocava os leitores para a defesa do fascismo: “Falo aos que são moços e aos que se rejuvenesceram pelo milagre da palavra nova”. Igualzinho aos fundamentalistas religiosos usando a web hoje. E, por outro lado, Martin Luther King não tinha Twitter. Novo ativismo? Ah, vá, até que nem tão novo assim...

*André Caramuru Aubert, 50, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

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