Nem só de carro e carne
A sociedade verdadeiramente desenvolvida que sonhamos está além de qualquer símbolo do consumo: é preciso associar educação à melhoria da qualidade de vida do povo
Em rede nacional de televisão, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez seu último pronunciamento antes de deixar o cargo. No alto dos seus 80% de aprovação popular, falou dos feitos do seu governo e exaltou a felicidade de passar a faixa para a primeira mulher presidente da República, pessoa que iria levar adiante o projeto de desenvolvimento do Brasil. Ao final do discurso, com os olhos marejados, no clássico estilo paz e amor que desde a eleição de 2002 o marcou em momentos de emoção, o líder arrematou que tinha muito orgulho de saber que encerrava seu governo realizando o sonho de ver “que todo brasileiro pode ter um carro na garagem e que todo brasileiro pode comer carne todo dia”.
Talvez esse tenha sido um dos discursos mais honestos do presidente Lula. Ali, de forma escancarada para todos os compatriotas, ele disse o que para ele era importante. O carro e a carne simbolizam o sonho de consumo mais básico e natural, do ponto de vista de um trabalhador que busca melhorar de vida. São estereótipos de um status social imediato, em um país que sofreu tanto com a desigualdade social. São também exemplos herdados das classes mais abastadas e que, naquele momento, poderiam representar a tão almejada evolução na pirâmide.
Não vou cair na armadilha simplista de não reconhecer a importância social histórica da ascensão de uma nova classe média que melhorou de vida, impulsionada pelos programas sociais e pelo acesso ao crédito. Entretanto, é fundamental – até para que no futuro não cometamos o mesmo erro – fazer a reflexão crítica da ausência de uma estratégia de desenvolvimento que levasse em conta o crescimento da nossa educação, associando esse quesito fundamental da cidadania à melhoria da qualidade de vida do povo.
EFEITO COLATERAL
Infelizmente, nosso colapso educacional e a falta de uma base sólida de compreensão cidadã causam uma terrível ausência de capacidade para desbravar outras fronteiras diante de um cenário atual de crise. Além disso, a trágica situação afeta também a própria percepção que se tem da política. Curiosamente, o mesmo governo que incluiu socialmente tanta gente, agora está na berlinda com índices de popularidade ridículos, pois não consegue mais gerar as condições para que esse consumo desenfreado continue. Vive assim um certo efeito colateral da estratégia de crescimento baseado apenas no consumo.
Os beneficiados por programas de acesso ao ensino universitário, como ProUni e Fies, são uma minoria diante do todo da população que continua sem o verdadeiro acesso à educação. O problema real começa na qualidade dos ensinos fundamental e médio, e o analfabetismo funcional que assola o país comprova isso.
A sociedade verdadeiramente desenvolvida com que sonhamos está muito além dos carros, das carnes e de qualquer outro símbolo de consumo. Só com o acesso universal à educação de qualidade se conquista a liberdade para compreender quem somos, o que queremos e aonde podemos chegar.
Alê Youssef*, 40 anos, é apresentador do programa Navegador, da GloboNews, comentarista do programa Esquenta, da Rede Globo, e analista político. Seu e-mail é alexandreyoussef@gmail.com e seu Twitter é @aleyoussef