Não seja viking

Sem abrir mão do carro, do consumo e da picanha, cometemos erros graves como os vikings

por André Caramuru Aubert em

Cemitérios, ao contrário do que possa parecer, não são feitos para os mortos, mas para os vivos. São feitos para que os que ficaram possam rever e reverenciar seus ancestrais, pensar sobre o passado, questionar o presente e temer o futuro. É por isso, acho, que as ruínas mais tristes que existem são as ruínas de cemitérios, onde a quebra entre passado e presente se mostra mais clara, onde os mortos que lá estão ficaram, de repente e para sempre, órfãos. É isso que me vem à cabeça quando olho as fotos das ruínas de Hvalso, que um dia foram igreja, cemitério e casas de uma próspera vila viking na Groenlândia (no Google Earth, busque Hvalsey, Groenland).

Por volta do ano 980, navegadores islandeses e noruegueses começaram a colonizar a região, que por quase 500 anos seria parte integrante do mundo nórdico, com seus nascimentos, suas festas e mortes, com seus bispos e juízes. Durante todo esse tempo as pessoas viveram ali em aldeias e fazendas, desdobrando-se em rotinas, acumulando memórias e construindo um futuro para os filhos. Até que, a partir de certo ponto, tudo começou a desandar em direção a um fim melancólico. As últimas notícias escritas sobre os vikings groenlandeses, já decadentes, chegou à Europa em 1410 por intermédio de um certo capitão Olafsson e mencionava um casamento, um caso de loucura e de uma pessoa queimada por bruxaria. Lápides em cemitérios indicam que havia colonos vivos em 1435, mas já não havia nenhum sinal deles em 1576, quando exploradores ingleses aportaram por lá. Ou seja, só havia, então, ruínas e cemitérios.

Picanha, carro e consumo
Como quando cai um avião, não há uma única teoria para explicar o destino dos groenlandeses nórdicos. Mas há algumas instigantes, especialmente as cinco defendidas por Jared Diamond no livro Colapso, que são: 1) estragos ecológicos causados pelos colonos; 2) piora climática gradual; 3) conflitos com vizinhos hostis (inuítes, ou esquimós); 4) perda de apoio e contato com a Europa; 5) conservadorismo e dificuldade para se adaptar às novas condições. O que assusta é que, se olharmos para a nossa civilização, hoje (pensando no planeta, e não num único país), as cinco causas acima se encaixam ou podem se encaixar num futuro próximo perfeitamente. Porque estamos, de forma mais “eficiente” que os groenlandeses, causando sérios danos ambientais. O clima (e agora com nossa ajuda) está mudando, e cada vez mais rápido. Ocorrerão mais conflitos entre os povos, à medida que se tornem escassos água, alimentos e energia. Não haverá ninguém para nos socorrer. Somos conservadores e não queremos abrir mão da picanha, do carro e do consumo desenfreado. Como os groenlandeses vikings, estamos cometendo erros, erros graves e sucessivos.

Aqui mesmo, pertinho, há Groenlândias com seus cemitérios abandonados. Experimente viajar pelo Vale do Paraíba, pegue a antiga estrada Rio-São Paulo, passe por São José do Barreiro, Bananal, Queluz... e você verá terras e fazendas arruinadas, onde há 150 anos havia uma riqueza tão exuberante, com cafezais intermináveis e barões tão eternos, que quem passava por lá imaginava ser aquilo uma sólida civilização. Hoje você verá morros carecas onde houve uma fechada mata atlântica com mais diversidade que a Amazônia. No entanto, a soma de desvario ecológico, irresponsabilidade política e loucura escravista fez daquilo o que é hoje: fazendas em ruínas, cemitérios abandonados e mortos esquecidos. Como na Groenlândia viking. Como, é provável, no futuro dos seus e dos meus filhos.


*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

 

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