Não questione o saldo da vida
O incrível homem que morava num caixa eletrônico
A última vez que eu o vi estava morando num caixa eletrônico. Isso, banco 24 horas. Não reclamou da vida. Era formado em economia e passava suas horas se divertindo com movimentações financeiras. Sabia da saúde monetária de todos os habitantes da região. Se tivesse paciência, daria conselhos pra alguns, denunciaria outros. Mas isso o faria lembrar dos velhos tempos.
Observava clientes se enrolando com os botões, ria dos cartões que eram engolidos pelas máquinas. Ele preferia comer moedas, cujo gosto era mais forte e encorpado, talvez pelo sebo dos dedos - que, aliás, variava infinitamente, apresentava vários temperos e consistências. Colecionava os insultos dirigidos aos teclados. Anotava-os nos cantos das notas de R$ 10 e depois as colocava na máquina para serem levadas durante saques ou assaltos. Era sua maneira de ser subversivo. Ou talvez profético.
Imaginava a reação das pessoas que recebiam notas com aquelas mensagens cheia de vida. Algo entre Confúcio e Philip K. Dick. Pensava até em escrever um livro: 'Fragmentos da Relação Homem X Tecnologia'. Abandonou a idéia quando acabou o papel do saldo. Se escondia entre o computador e uma porta de plástico - era todo espaço e companhia de que precisava. Quando se sentia carente, tentava a sorte com algumas das senhoras de pernas longas e sapatos altos que apareciam por ali.
Algumas gostavam dele ou pelo menos da fantasia de trepar enquanto o extrato era impresso. Sentia uma estranha obrigação de atender bem: nunca determinou limite de crédito, funcionava a qualquer hora e não mudava de rotina nos fins de semana. Talvez estivesse influenciado pelas propagandas dos bancos. Vai saber. O único problema era quando apareciam os fardados que 'reabasteciam' o caixa.
Ele tinha de se esconder junto com os ratos e as baratas. De longe observava braços armados e nem sempre fortes carregarem sacos de dinheiro. Pensava na transitoriedade da vida. E das regras morais. Geralmente quando um segurança acidentalmente embolsava alguma grana. Perguntei se ele não tinha saudades da vida normal, e desconversou.
Apenas imaginava como poderia ser a vida num cofre ou mesmo no Banco Central. Queria morrer entre as rotativas da Casa da Moeda. Sua pele seria vendida aos japoneses ou talvez na bolsa de valores. Poderia ser um tapete no FMI. Ele ficava excitado ao pensar nessas coisas. Desejava até abandonar o caixa e arriscar vôos maiores. E daí ouvia os sons das pequenas impressoras matriciais, dos botões sendo pressionados, das respirações ofegantes de assaltantes e clientes.
Sabia que ali era seu lugar. Afinal, o mundo não merece investimentos inconsequentes.