Não morre mais

Este é o alquimista Art Kunkin, que acredita ter descoberto o elixir da longa vida

por Bruno Torturra Nogueira em

 

 

Cá estamos, caro Art. Você tem 80 anos e seus joe­lhos doem. Sua vida foi qualquer coisa, menos banal. Tantas idéias, tantas mulheres, jornadas pelo mundo e pela mente. Você já tirou sono de presidentes americanos, de tantos agentes da polícia. Você ensina meditação, Art. Estuda alquimia há quase 30 anos, tem toneladas de livros e um bem formado conhecimento metafísico da rea­lidade. Vai, Art, desembucha: o que é envelhecer?

“Envelhecer é muito, muito ruim. Encurta a sua vida.”

É o que sintetiza o senhor antes de começar uma explicação, para o leigo repórter, sobre como ele, depois de tentar mudar o mundo pelo socialismo, pelo liberalismo radical, pela imprensa ou pela desobediência civil, quer desafiar a mais implacável das autoridades. Art Kunkin, dentro de um amplo trailer em Joshua Tree, na Califórnia, acredita que pode questionar a morte.

É um velho sonho dos alquimistas, há séculos nesse projeto. A pedra filosofal, uma substância misteriosa, um elixir definitivo que transmutaria metais em ouro e traria vida virtualmente eterna a quem o utilizasse. Se Art estiver certo, a pedra filosofal é, em parte, uma pedra. Ou seis pedras no fundo de um pote de vidro, dando suporte para duas maçãs. É o que ele traz da cozinha. Agachado, aponta para seu experimento.

“Isso é uranita. Tá vendo aquele verde nela? É urânio. Mas urânio de baixa radiação, tão fraca que não passa por esse vidro. Mas suficiente para energizar essas maçãs.” Art mantém um sorriso no rosto quando chega perto de revelar sua eureka. Mas não ainda... Para entender aonde chegou Art Kunkin, é preciso entender seu caminho.

Guerrilha jornalística
Depois que Kennedy morreu, Art, um mecânico de indústrias, socialista do movimento trabalhista, decidiu voltar, meio velho, aos estudos. Queria largar o jaleco por trajes mais sóbrios – se tornar um professor de história na Califórnia. Quando, articulado com esquerdistas, recebeu uma visita do FBI. A livre América estava desconfiada de sua inclinação política. No dia seguinte foi despedido sem maiores explanações. O desaforo que faltava para ele revidar com tudo o tabefe do Estado. Empenhou US$ 50 e bons argumentos para erguer um jornalzinho engajado no fim de 1963.

Melhor timing impossível. A vocação antiautoridade e humanitária de Art e seu jornal foi a plataforma que faltava para o espírito não menos libertário que floresceu na Califórnia dos anos 60. Sua imprensa livre cuidou de ser a porta-voz de hip­pies e beatniks, de denúncias antes impublicáveis contra políticos, de manifestos antiguerra, pró-Panteras Negras. E um humor corrosivo, até então inédito, estampava as manchetes do Free Press. Como o Pasquim em terras brasileiras, Art fez algumas das melhores capas e entrevistas de seu tempo. Na base da pura guerrilha jornalística, cresceu a ponto de vender 120.000 cópias semanais, virar uma editora de livros e uma livraria cult em Los Angeles. Além de instigar o surgimento de dezenas de jornais independentes e, por definição, livres.

Art moderno
Inimigo declarado da velhice, há décadas que ele, veja só... é velho. Mesmo sendo o jornalista número um do underground cultural daqueles tempos, Art mesmo diz: “Eu já não tinha idade para ser hippie”. Exagerado ou não, tinha lá seus 40 anos. Bons anos a menos do que outro protagonista no LA Free Press, ­Timothy Leary, um bom amigo de Art Kunkin.

O futuro alquimista e o guru psicodélico se tornaram uma dupla, politicamente falando, perigosa. Dados a radicalismos bem-humorados, Leary se lança como candidato a governador da Califórnia e Art se torna seu diretor de campanha. “Foi mais uma brincadeira do que uma campanha propriamente dita”, jura Kunkin. Mas uma brincadeira que jogou LSD no ponche eleitoral, rendeu um jingle assinado por John Lennon – ­“Come Together” era o slogan de Leary – e, por fim, cadeia para o candidato lisérgico. Mesma época em que Art se complicou muito com a lei e as finanças, depois de publicar todo orgulhoso nomes e endereços de todos os agentes de narcóticos da Califórnia.

Pedra filosofal
Os anos 60 chegavam ao fim, e a linda onda de liberdade, como bem definiu Hunter Thompson, estourou na praia e retrocedeu. Reagan assume a Califórnia, Nixon, a Casa Branca, e a cultura do ego brota para tomar as décadas seguintes. E foi na alvorada dos anos 80, em uma missão jornalística, que Art, um cético fundamentalista, viu coisas que mudaram seu rumo para sempre. Reportando um curso de alquimia em Salt Lake City, ele teve uma verdadeira experiência psíquica. Para checar, repetiu a dose, algo como entrar na mente e no corpo de uma pessoa em outro país, e deu certo. Daquele dia em diante, Art foi viver na cidade e trocou a redação politizada por laboratórios e infindáveis compêndios de alquimia.

Pausa: alquimia não é química. É uma tradição milenar, praticada por sociedades de todos os continentes, que, muito antes da separação sistemática das ciências, interpretava o mundo unificando química, astrologia, física, biologia e espiritualidade. Para o alquimista, não faz sentido separar matéria e espírito. A busca é entendê-los e aprender a manipulá-los. Na base do estudo e da intuição, penetrar na essência das substâncias e da vida para criar a pedra filosofal. Despertar material e espiritualmente a cura definitiva.

Uma visão em desuso, sem dúvida, e pode ser natural que nosso tecnológico mundo a veja como obsoleta, fossilizada. Ao contrário pensa Art, já que fundir disciplinas e tentar medir o etéreo são as pedras filosofais da mais avançada ciência contemporânea.

Radioatividade, ora bolas
É 10 de setembro. Enquanto conversamos no refrescante trailer de Kunkin no deserto, o Grande Colisor de Hálons faz seu primeiro experimento no subsolo suíço, 10 bilhões de euros para a mais complexa aventura científica da história. Milhares de cérebros brilhantes querem descobrir do que é feito o universo no fundo do fundo. Art dá de ombros. É que, sozinho em seu trailer, tem um laboratório bem mais humilde (um pote), mas uma pergunta mais crucial. Talvez a única dúvida que assola toda santa criatura viva, seja uma ameba, o Michael Jackson ou o cientista na Suíça: como diabos não morrer?

O palpite sagaz de Art Kunkin tem o espírito daqueles óbvios invisíveis. Literalmente invisível, no caso. Alquimistas falam em uma substância, um fogo sagrado, capaz de provocar transmutação. O budismo fala em prana, uma energia misteriosa no ar que, se absorvida da maneira correta, harmoniza o corpo e traz saúde. A National Geographic de 2004 mostra uma caverna rica em urânio onde idosos passam temporadas para curar todo tipo de mazela. Um documentário sobre a bomba atômica de Hiroshima revela que muitos civis nos arredores da explosão sentiram-se extremamente saudáveis pelos anos seguintes ao cogumelo nuclear. Noves fora, radioatividade, ora bolas! Tudo é uma questão de dose, como postulou Paracelso, o pai da farmácia, ele mesmo um alquimista.

A maça, sempre ela
De volta ao pote. Maçãs, uma tela de metal e pedras com urânio. Empírico que só ele, Art está há mais de um ano comendo suas frutas radioativas sem acompanhamento médico. Resultados? 80 anos de idade, não tem fios grisalhos. Uma cabeleira vasta que, assim como as unhas, cresce duas vezes mais rápido do que antes de começar tal dieta. Sente-se com mais energia para trabalhar, para dar conta da nova namorada, décadas mais nova. Juntando uma cultura pra lá de enciclopédica em 15.000 livros de sua bem organizada biblioteca, articula psicanálise, física, política e budismo em um só pensamento, atribuindo às mitocôndrias celulares a chave da longevidade. “O truque é colocar dentro do corpo energia extra, vinda da radiação, para simplesmente interromper o envelhecimento. É claro que precisamos pesquisar, e muito. Mas, por enquanto, estou sozinho nisso.”

Mas vamos lá, Art... confessa, você tem medo da morte?

“Olha, não é medo o que eu tenho. Sou um meditador, me aprimorei muito nessa vida, e sei que posso, de alguma forma, reencarnar. Sei que a morte é uma libertação por um lado. Sem dúvida não é por medo que quero viver para sempre.” Então explica, Art... “Tenho 80 anos e vivi tanta coisa. Deu tanto trabalho acumular esse conhecimento de que me orgulho, de achar mais equilíbrio na vida e na mente. Demorou tanto para me aprimorar como homem e como alma que quero aproveitar isso por muito tempo. Simplesmente não é justo morrer logo.” Dá pra discordar?

"DEMOROU TANTO TEMPO PARA ME APRIMORAR COMO HOMEM E COMO ALMA QUE NÃO É JUSTO MORRER LOGO"

Pregando no deserto
Dia seguinte, 11 de setembro. Democratas e republicanos fazem jogo de cena, “unidos” para homenagear os mortos no WTC em 2001. Art nem liga: “São dois partidos de direita”. Prefere esquecer por uns tempos a política a que tanto se dedicou nas décadas passadas. Até porque, em última análise, a promessa da vida eterna é a revolução mais radical que Art poderia provocar na sociedade. O golpe mais duro que ele pode dar em seu tão malquisto capitalismo.

Como sabe disso, o incansável publisher de provocações tem um projeto na manga. Quer articular o lançamento da Immortality – The magazine, uma revista 100% dedicada à pesquisa e às conseqüências de uma vida prolongada ad infinitum. Mais do que a ciência, é a política que vai ter que dar jeito no mundo quando os cemitérios ficarem, mesmo, às moscas.

“Tudo vai ter que mudar. Como o dinheiro será acumulado, como será o nascimento de novas pessoas, a idéia de país...? Nosso mundo é, conscientemente ou não, erguido sobre a expectativa da morte.” Silêncio do repórter. “Não é utopia, isso vai acontecer mais cedo ou mais tarde. Só que eu preciso correr mais do que os outros, porque já tenho 80 anos”, justifica. “Sei que muita gente pode me achar esquisito por fazer isso, e estou pensando em aumentar um pouco mais a dose das frutas, mas eu tenho que ter pressa”, diz antes de se despedir e voltar para os estudos em seu trailer no deserto de Joshua Tree, aquela terra dura, seca e incrivelmente fértil para as criaturas que sabem, misteriosamente, permanecer vivas.

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