Não dá pra controlar

Luiz Mendes: "Vivi na prisão e garanto: controle total não é a saída"

por Luiz Alberto Mendes em

 

Vivi na prisão por 31 anos e dez meses. Hoje vejo quarteirões inteiros virando condomínios cercados por muralhas e seguranças armados. Por experiência própria, garanto: controle total não é a saída

Acho que está na hora de parar e fazer uma releitura do que é a sociedade humana. Seus objetivos, ética, moral e verdades. Caso contrário temo que chegaremos em breve ao insustentável. Onde está a raiz da necessidade de tanto controle da vida individual? Na insegurança, no medo, no pavor do que pode acontecer. E esperamos o pior. E por que estamos tão inseguros? Porque não confiamos mais uns nos outros. E de onde parte toda essa desconfiança do outro? Na nossa própria insegurança quanto a nós mesmos. E qual é a base de uma sociedade? A confiança de que cada um fará sua parte. Ao sair de casa não estamos mais seguros de que chegaremos ao nosso destino. Pior ainda: não sabemos se conseguiremos voltar para casa.

Desconfiamos porque sabemos que coexistimos sob valores instáveis. Desenvolvemos capacidade crítica e hoje encaramos tudo. Nós já nos vemos e não somos avestruz. A amizade, o amor, o casamento, a palavra (quer algo mais desacreditado que a palavra?), o respeito, a proteção às mulheres e às crianças em primeiro lugar e outros tantos valores que nos davam estabilidade existencial provaram-se frágeis no presente. Funcionavam quando éramos poucos. Hoje somos muitos e precisamos recriar esses valores com base na experiência de vivermos numa cidade de múltiplas comunidades.

ILUSÃO DE SEGURANÇA

Vivi sob controle total por 31 anos e dez meses. Para sair da cela era preciso autorização. Para andar era preciso mãos para trás, camisa dentro da calça, careca, barba feita e cabeça baixa. A cor sempre foi bege. Revistas várias vezes ao dia. Era obrigado a tirar a roupa diante de homens que me examinavam minuciosamente. Para ir a qualquer lugar da própria prisão era preciso escolta, quando não algemas. Uma das piores tristezas em estar preso é que se está sob vigilância até para fazer suas necessidades fisiológicas. Satura, ninguém aguenta. As pessoas enlouquecem no tempo.

Estar livre significa estar livre do controle total. Um alívio que somente aqueles que passaram por tais pressões podem aquilatar. Continuo sob vários outros controles. Do dinheiro, por exemplo. Só saio de casa quando necessário. Sair é gastar. Não tenho carro, moto, na verdade não tenho quase nada. Fiquei espantado ao ver o portão de minha casa fotografado no Google Maps. Há o controle dos números (RG, CPF...), das senhas, das câmeras em todos os cantos, dos celulares, dos impostos, da postura no trabalho e muitos outros.

Tais controles não me assustam. O medo me assusta. Essa insegurança ansiosa e crônica que a gente vê nas pessoas. Somos tantos e já não conhecemos ninguém de verdade. Isso pode provocar atitudes hipercontroladoras. Tenho medo do medo. Ele pode nos levar a uma espécie de controle que se aproxima do controle total. Quarteirões inteiros estão virando condomínios cercados por muralhas e guaritas. Ruas se fechando com portarias e, em volta, trânsito pesado de seguranças armados.

Por isso comecei e termino afirmando que precisamos fazer uma releitura do que seja uma sociedade. Os sistemas de segurança e a saturação de vigilância provaram-se paliativos que não resolvem a questão. Apenas causam ilusão de segurança. Os shopping centers já foram chamados de “ilhas de segurança”. Hoje é um deus nos acuda de tiroteios inesperados. E a consequência é algo parecido com uma sociedade de controle total. Um BBB gigantesco. As pessoas criam diversões caseiras e pouco saem do espaço controlado onde coabitam.

Embora pareça utópico e quase impraticável, carecemos de passos mais seguros em busca de algo melhor do que temos. O controle total, garanto por experiência pessoal, não é a solução.

*Luís Alberto Mendes, 58, autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com

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