Na solitária

Luiz Mendes: 'Eu me sentia mais sozinho nessas celas coletivas do que numa individual'

por Luiz Alberto Mendes em

Na superlotação dos presídios, muitos detentos dormiam pendurados em redes improvisadas, em camadas, começando do teto. Eu me sentia mais sozinho nessas celas coletivas do que numa individual. Aprendi a gostar de viver só.

Por décadas quiseram me pressionar, mas parece que tenho alguns parafusos a menos e não dá para que eu seja ajustado. Quando me isolaram completamente, aprendi a gostar de viver sozinho; hoje adoro morar e viver só. A maioria das pessoas se assusta com a solidão e foge desesperadamente. Na maior parte do tempo em que estive preso, vivi em celas individuais. Foram 21 anos. No começo foi horrível. Jamais havia estado tão sozinho em minha vida. Não havia com quem conversar, trocar impressões, desabafar, chorar... Foi então que percebi o quanto os outros são importantes para nossa sanidade mental e que toda forma de fuga envenena, mesmo aquelas que parecem valer a pena. Foi difícil, até aprender a viver comigo mesmo, a suportar-me e a desenvolver a capacidade de pensar em vez de falar. Foi quando descobri que solidão mesmo é uma vida sem sentido. Quando encontrei um sentido para existir, conquistei uma densidade emocional que nunca mais me deixou sozinho. Os livros ajudaram muito. Foi difícil me habituar a eles, mas posso confiar: os livros me salvaram. Literatura não é só a linguagem dos apaixonados; é também a única saída dos presos e dos desesperados.

Com o tempo, as celas de todas as prisões, por conta da superlotação dos presídios, tornaram-se coletivas. Então passei a conviver abruptamente com o contrário: o excesso de pessoas, a superlotação. Houve momentos em que não havia nem 1 metro quadrado para viver sozinho. Tudo era absolutamente coletivo. Muitos dormiam amarrados nas grades ou pendurados em redes improvisadas, em camadas, começando do teto. Foi terrível de me adaptar, acostumado ao silêncio e à calma que estava.

Por incrível que pareça, eu me sentia mais sozinho ali do que quando morava individualmente. Não era possível sequer sentar, quanto mais deitar. Éramos comprimidos como ratos. As brigas eram constantes e até bem-vindas; distraía a mente do sofrimento ao qual nos víamos obrigados. De manhã cedo, para usar a privada era sempre uma tortura. Fazia fila e era preciso ser rápido no gatilho. Não havia nem como se masturbar. Vivíamos suando sob um calor muito forte, desidratante, só de cuecas. Um cheiro constante de suor azedo, aquele monte de homens comprimidos como animais em trem de carga.

Tiozinho corredor

Depois dessa fase mais difícil, sempre coexisti coletivamente. Não tinha mais sossego. No xadrez o tempo todo havia a televisão ligada, algum rádio ou vários rádios ligados, alguém conversando alto, nunca mais o silêncio gostoso da madrugada. Eu saía correndo no pátio, quando eles abriam a grade, para ficar sozinho e poder pensar sem ninguém me abordar. Corria mais de 2 horas sem parar, o pessoal estava até acostumado comigo correndo, fazia parte do folclore da cadeia o “tiozinho corredor”.

Ao sair, assim de cara, fui conviver com uma companheira. A convivência deu certo até aparecerem as realidades humanas. Eu jamais seria perfeito e possuía flagrantes limites. Terminamos como amigos; eu queria vir para São Paulo ficar próximo dos meus filhos. Rapidamente construí a minha casa e ela é toda adaptada para que eu viva só. A cama é de casal por conveniência. Mas pulo da cama para a mesa dos computadores (tenho dois), meus livros, cadernos de apontamentos, coleção de DVDs e CDs, a TV enorme e a cabo, o home theater, o banheiro é próximo e tudo aqui tem um sentido de funcionalidade: de me deixar à vontade para escrever, ler, pesquisar e estudar.

Escrever é algo para se fazer totalmente ou deixar de fazer para sempre. Essa é a minha vida; gosto disso. As únicas coisas supérfluas são meus enfeites de artesanato e minhas miniaturas de louça. Mas isso é algo que gosto de colecionar, nem sei bem por que, talvez porque goste do que é belo. Meus planos são de viver o que me resta de vida sozinho, embora eu torça para que o amanhã seja algo inteiramente novo e cheio de surpresas. Não tenho medo da convivência, sou capaz de diálogo, só não aceito essa paz de quem cala para não ter que brigar. Essa é a paz do medo e da covardia e é disso que me afasto. Esse é um caminho que conheço bem: o silêncio nos leva a uma vida sem sentido e, por consequência, à solidão verdadeira.

*Luiz Alberto Mendes, 60, é autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com

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