Muito amor pra dar
Bela, Renata, Marcela, Anne, Alfredo, Fran e Luiz mostram a cara do Amor Revolução
Sem pensar em dogmas e modelos convencionais de relacionamento, há um grupo cada vez maior de pessoas interessadas em aceitar um modelo de amor mais amplo. Amigos, amantes, namorados... são palavras que não vão definir uma turma que, simplesmente, se ama. Passamos um fim de semana com Bela, Renata, Marcela, Anne, Alfredo, Fran e Luiz para mostrar que cara tem o Amor Revolução – uma causa um modo de vida, que, para eles, não tem mais volta
Poderia ser mais uma balada na vida de Luiz. Fugaz, etílica... normal. Mas naquela noite, há cinco meses, uma cena nada previsível mesmerizou o rapaz mexicano radicado em São Paulo. Um grupo de pessoas fundia-se em uma massa compacta, fluida, vagarosa. Difícil contar quantos na turma, de tantas pernas e braços entrelaçados. Olhos fechados, corpos deslizando uns sobre os outros – moças, rapazes... pessoas. Era uma farra hedonista, uma baguncinha, um convite à sacanagem? Luiz sentiu que não. “Mexeu demais comigo. Tinha uma pureza de carinho, uma energia muito linda”, ele conta e confessa, “eu queria muito entrar ali, mas não sabia se dava.” Só precisou chegar perto. Bela, uma das damas encaixadas no grupo, puxou Luiz para o miolo. E ele nunca mais saiu.
“Eu sempre me considerei um especialista em abraço”, elabora deitado, enquanto recebe cafuné de duas garotas, “mas no Brasil as pessoas são muito travadas. E eu estava entrando nessa. A melhor coisa foi conhecer essas pessoas. Hoje me assumo como sou. Foda-se o que os outros vão pensar.” Soa estranho, inclusive, escutar uma autoafirmação tão decidida. Afinal Luiz não é gay, não é bi, não está em busca de putaria nem se preocupa com o rótulo (ou a fama) de hétero. E é exatamente isso que ele bate no peito para assumir: ele gosta de carinho.
Ele e, no fundo, todo mundo. Mas é raro achar quem “saia do armário” como essa turma. Estamos em sete, bem acomodados em uma quitinete do edifício Copan, centro de São Paulo. É a casa de Alfredo Toné, ou Alfreedom, como assina por aí, e Isabela Alzira, a Bela, sua... namorada? Não importa, no fundo. Antes de qualquer alforria sexual, é dos conceitos e das amarras linguísticas que eles buscam independência. E foi em torno do “casal” que os demais naquela sala gravitaram para se conhecer. Ou melhor, em torno das performances que os dois promovem em festas e nos cursos de contato e improvisação oferecidos por eles na Casa Jaya – espaço ecocultural na Vila Madalena.
Por caminhos diferentes, Bela, Alfreedom, Marcela, Luiz, Renata, Anne e Fran – a turma fotografada aqui – acabaram dentro daquela turba sensorial, apropriadamente batizada por eles de amoreba – a ameba do amor. “Para muita gente é difícil entender que isso não é um surubão”, Alfredo diz, mas a frase poderia sair da boca de qualquer um ali. “Parece uma orgia. Mas nós temos um elo coletivo, de amor. E isso é o mais importante. Claro que no meio de uma amoreba vão se formando situações mais sexuais, mais tesão aqui ou ali. Mas não tem afobação. É tudo muito natural.”
A amoreba “estendida”, por assim dizer, é muito maior do que os sete citados aqui. É uma rede de amigos, pessoas que se conectaram em festivais, festas, aulas, viagens. “Uns 300!”, chuta Bela, sem o menor critério estatístico. Pessoas, presentes em maior ou menor grau, que compartilharam não apenas uma dança coletiva coladinha, mas experiências de amor, nudez e sexo que as libertaram como nunca. Ciúmes, padrões estéticos e a própria ideia de amor romântico, exclusivo, são inevitavelmente colocados em xeque. E a medida final para que alguém assuma seu papel nesse difuso e bem conectado corpo coletivo é simples: a felicidade que tal entrega, tal desapego, gera. Marcela, estudante de psicologia, descobriu sua turma há poucos meses. Mas já tem articulado um pensamento claro, bem simples, sobre o que o grupo representa em sua vida.
“A primeira vez que fiquei nua para entrar em uma cachoeira, eu hesitava. Reparava no corpo dos outros, pensava no meu corpo. Mas depois eu percebi que isso era tudo meu. Que os outros não estavam me enxergando assim”, e conclui, sucinta: “Quando você está sem roupa, você se pergunta quem é de verdade”. Alfreedom completa: “Em geral as pessoas só ficam nuas para tomar banho ou transar. E tem gente que acha que achar nudez normal é coisa de maluco...”
“Em geral as pessoas só ficam nuas para tomar banho ou transar. E tem gente que acha que achar nudez normal é coisa de maluco...”
Mas a mera nudez é só um passo nesse imapeado caminho do amor fagocitoso. Desafios, e recompensas, maiores estão em aceitar que dá para amar muitas pessoas, transar sem segredos e mentiras. “A gente vive preso em uma ideia romântica, possessiva de amor. Eu descobri que o amor não pode ser idealizado. Mas pode ser um ideal. É bem diferente”, Marcela define, do alto de seus já sábios 20 anos. Um ideal se oculta também entre as infinitas possibilidades e sutilezas de sensações que existem entre um cafuné e uma trepada. E também, é claro, em soltar-se das restritas definições de hétero, homo, bissexualidade. De novo, Alfreedom: “Eu posso ter tesão por um cara, se eu achar ele apaixonante? Claro. Mas eu sou bissexual se eu gosto muito mais de mulher? E por que preciso responder essa pergunta? O amor é uma entidade muito maior do que tudo isso”.
Ainda assim, fica claro, mesmo para uma breve testemunha, que paira sobre todos uma sensualidade, uma libido, essencialmente feminina. São elas que dão o ritmo, que tocam a todos e todas com mais tranquilidade, que não poupam selinhos e carícias. Que tiram o típico afobamento, o preto no branco, da sexualidade do macho. E afagam o presente repórter enquanto escuta os relatos e os diversos motivos pelos quais elas, e eles, aceitaram o convite da Trip para um fim de semana em um sítio perto de São Paulo.
“Eu nunca fiz fotos, mas eu acho que isso que nós temos é algo importante de comunicar. Não pode ser segredo”, conta Renata. Ela, como todos, reconhece uma triste, alienante dureza na vida “convencional” da cidade. Um reinado falido do ego, que encapsula e isola pessoas e transforma sua obstinada luta pela naturalidade em algo bizarro. “Em São Paulo o primeiro ato de rebeldia é carregar cores. Quando eu carrego um girassol na rua, as pessoas me olham como se eu fosse o Falcão!” E girassóis são comuns na vida da moça. Massagista de profissão, e jardineira terrorista como causa, quer gastar seu tempo enfiando mudas sem pedir autorização pela metrópole. É dela também uma simples definição do tipo de amor que permeia a tal “família”, como todos, vez ou outra, chamam a si mesmos: “Aqui todo mundo é mãe e todo mundo é filhote”.
Filhotes, ou mães, vez ou outra Alfreedom e Bela assumem a palavra como líderes da matilha. São os mais presentes na Casa Jaya, onde acontecem os cursos de contato e improvisação. E buscam, artistas, atores que são, razões e implicações metafísicas, políticas, para o amor revolução – o movimento sem dogmas que está em silenciosa expansão. Um caminho sem volta, acreditam, “um ajuste dos tempos”, na boa conclusão de Bela sobre o que está por dentro da amoreba. Um atraso cultural. Uma solução para um paradigma falido de amor, casamento e monogamia. Um desejo de criação coletiva, de transformação social e espiritual, que se arrasta há gerações e que ganhou uma estética mais clara e exuberante com o movimento hippie. Mas que hoje, em um mundo ainda mais complexo e dinâmico, não cabe mais na datada alcunha. É essa falta de cercas conceituais que deixa tudo mais difícil na hora buscar uma síntese.
Anne, jornalista, muito atenta, menos falante, pede a palavra: “Para mim não precisa ficar separando, analisando tanto as coisas. Se eu quiser fazer amor, eu faço. Se eu quiser trepar, eu trepo. O motivo que me fez fazer as fotos, e estar aqui, falando com você, é simples. Todo mundo fica pelado. Todo mundo faz sexo. Todo mundo gosta. Eu tô cansada de hipocrisia”, desbafa com um sorriso. “É minha luta contra o preconceito.” Alfredo ri como um sátiro. Embalado pelo vinho que flui, vagaroso e sempre, ele vaticina: “Isso não é sobre a gente! É sobre a paz mundial”. Paz mundial? “Claro. Eu te garanto... se você dorme em uma amoreba vai querer abraçar até o padeiro de manhã. ”