Mr. Golden Little Hammer
Uma pequena confraria de artesãos brasileiros que é disputada a peso de ouro
Foi-se o tempo em que a exportação de profissionais brasileiros era associada aos sofridos dekasseguis no Japão, dentistas maltratados em Portugal ou mineiros de Governador Valadares em sub-empregos nos EUA. Com as mudanças na geopolítica e na economia, enquanto milhares de europeus e trabalhadores de outros continentes vêm pra cá em busca de uma vida melhor, uma pequena confraria de artesãos brasileiros é disputada a peso de ouro em algumas das maiores cidades do mundo. Conheça a selecão brasileira dos martelinhos de ouro, os Pelés da lanternagem.
Murilo Mendes é um dependente de pedras. Precisa delas para sobreviver, e não esconde de ninguém. Quanto maiores elas são, mais satisfeito fica. Tanto que vai anualmente à Europa em busca das melhores. Já faz sete anos que ele entrou nessa vida e, desde então, não conseguiu mais sair. É por causa do estrago feito pelas pedras de granizo que Murilo pode exercer seu ofício. Ele trabalha como martelinho de ouro. Sempre que uma chuva com grandes bolas de gelo desaba em algum país pelo mundo ele é chamado às pressas, viaja para desamassar carros castigados pelas tempestades. Com marteladas sutis, ele reverte artesanalmente cada um dos amassadinhos na lataria. Ele e uma porção de outros brasileiros que têm abarrotado seus passaportes de vistos pulando de país em país para trabalhar como martelinho de ouro.
Nós, brasileiros, viramos especialistas na arte de recuperar carros levemente amassados sem precisar trocar a peça ou refazer a pintura. Algo que torna o serviço mais rápido e barato. Uma equação de resultados interessantes o suficiente para chamar a atenção dos europeus, que têm seus mimos de quatro rodas castigados anualmente com as chuvas de granizo do verão. É justamente nessa época, aliás, que os martelinhos de ouro daqui viajam para encher suas contas bancárias de euros. Passam toda a temporada de dilúvios de gelo por lá. “Já faz quatro meses que saí do Brasil”, contabiliza Murilo, falando de Berlim. “Saí pra fazer um serviço na Turquia, depois apareceu um na França, daí na Suíça... Lá trabalhei em uns 30 Porsches. Aí soube de uma chuva que tinha caído na Alemanha. Vim e faz uns 40 dias que estou trabalhando aqui. Vou sempre atrás do granizo.”
Todo mundo demitido
Nessa busca pelas tempestades de gelo, Murilo chegou a ficar três anos levando uma vida de nômade pela Europa. “Aproveitei pra fazer vários contatos. Nessa profissão é preciso conhecer as pessoas certas para ser chamado pros serviços. Um monte de gente queria estar aqui no meu lugar, mas não tem os contatos que eu tenho.” Murilo, claro, não revela quem são esses cafetões da martelagem. Não quer atrair concorrentes. Além disso, é obrigado a manter alguns sigilos. É que, eventualmente, esses funileiros artesanais são chamados para desamassar carros zero-quilômetro atingidos por chuvas de granizo ainda nos pátios das montadoras. E nenhuma marca quer divulgar ao público que vende veículos zero já sinistrados. “Já deu o maior problema isso”, conta. “Em 2007, vim fazer um serviço numa fábrica alemã que estava com 30 mil carros amassados. Sabe o que aconteceu? O fotógrafo de uma revista entrou lá escondido e tirou fotos dos carros, da gente trabalhando. Saiu na revista e no dia seguinte todo mundo foi demitido.”
Marca registrada
É incerta a história sobre o início dessa técnica de reparar amassados na base da martelada. Há quem diga ser uma invenção totalmente brasileira. Alguns discordam, dizem que nós apenas aperfeiçoamos a arte. O nome “martelinho de ouro”, contudo, tem dono. Pertence a Pedro Souza Santana, um senhor de 63 anos, e é uma marca oficialmente registrada
“Nessa profissão, é preciso conhecer as pessoas certas para ser chamado para os serviços (internacionais). E é preciso manter certos sigilos...”
“Demos entrada no pedido de registro em 1994, mas só saiu em 2005”, conta Edvaldo Santana, filho de Pedro. E ninguém tentou registrar antes disso? “Sim! Se você entrar no site do Instituto Nacional de Propriedade Industrial, que regula essa questão de marcas, você verá todos os pedidos de registro para esse nome.” Entramos no site. Uma rápida pesquisa no nome “martelinho de ouro” nos leva a uma lista de 16 pedidos de marca. O mais antigo é de 1983 – o processo já aparece como extinto. O único que teve o registro efetuado é a Reparadora de Autos Martelinho de Ouro. Justamente a empresa de Pedro e Edvaldo. E por que só eles conseguiram? Pedro gosta de dizer e ostenta no site da firma: foi o pioneiro.
“Eu não inventei o serviço, mas fui eu que lancei no mercado”, ele diz – e logo começa a contar sua história. Trabalhou como funileiro na fábrica da Volkswagen, no ABC paulista, entre 1969 e 1980. Nos últimos cinco anos de serviço fez a chamada funilaria artesanal. Isso nada mais era do que retirar pequenos amassados da lataria já no final da linha de montagem, valendo-se apenas de um martelo. Tudo de maneira cuidadosa, para evitar que o carro voltasse ao setor de pinturas. Quando deixou a montadora, Pedro resolveu lançar nas ruas o serviço que havia aprendido dentro da fábrica. Fez sucesso. “Tinha um revendedor que comprava carros amassados, mas sem danos na pintura, e levava pra eu puxar a lataria de volta. Ele me via dando marteladas e não acreditava. E começou a dizer que eu tinha um martelinho de ouro.” Daí o nome.
Além de Pedro, apenas mais um funileiro saído da Volks usava a técnica naquele início de anos 80. Era Onofre Veiga, que ganhou o propício apelido de Uri Geller, o paranormal israelense que entortava talheres com o poder da mente. Eles só não imaginavam que, décadas depois, incontáveis levas de brasileiros viajariam o mundo para executar o tal serviço.
Do próprio bolso
Um vídeo no YouTube de quase três minutos mostra alguns estilosos carros esportivos da BMW sendo recuperados. Em seguida, exibe as ruas de uma pequena cidade europeia. A legenda diz: “Talentoso martelinho restaurando amassados de granizo na França. Dois meses de trabalho”.
“Na França, eram 4 mil carros danificados. Entre 850 e 1.200 euros cada carro desamassado”
O responsável pela filmagem é Rogério Carmieto. Há 12 anos ele transita por países do exterior para oferecer seu trabalho. “Nessa viagem da França eram 4 mil carros danificados no pátio da montadora. Para cada carro desamassado pagavam entre 850 e 1.200 euros. São veículos zero-quilômetro, cara. Você não pode deixar um amassadinho.” Considerando que eles fazem até dois carros por dia, os valores soam atraentes. Mas Rogério logo joga o balde de água fria. “Quando viajamos pagamos tudo do próprio bolso. Eu compro a passagem, pago o hotel, se tiver que alugar carro eu alugo...”
É preciso contar com os imprevistos também. Certa vez, quando estava no Texas para arrumar algumas dezenas de carros castigados pelo granizo, Rogério foi surpreendido por uma nova chuva de gelo – e o veículo que ele havia alugado também acabou cravejado. Pergunto se ele mesmo desamassou o carro antes de devolver. A resposta vem direta. “O quê!? Devolvi como estava. Se pelo menos eles me pagassem pra arrumar...”