Moisés da Rocha
Ele é o homem responsável por dar voz oficial aos negros na rádio brasileira
Quem nunca viu o samba amanhecer vai no Bixiga pra ver. E quem nunca nem ouviu esse clássico do samba paulista? Liga na Rádio USP aos sábados e aos domingos a partir do meio-dia. Há boas chances que essa canção, composta por Geraldo Filme (um dos maiores artistas negros do Brasil), dê as caras. Durante duas horas, o senhor Moisés da Rocha embala o ritmo brasileiro por excelência no programa homônimo a seu bordão. “O Samba Pede Passagem” desde 1967, entoado pelo meio crooner meio bamba que jura ser mais coadjuvante que protagonista da história -- mesmo sendo amigo de gente como o próprio Geraldo Filme.
“Esse programa foi a primeira voz que a comunidade negra teve num meio de comunicação”, diz ele, hoje, aos 71 anos. Moisés tem muito tempo pra perder tempo. No centro de São Paulo, numa sala com cores de repartição pública, ele lida com muitas coisas como se fosse um percussionista sincopando. Tamborila o teclado, responde a emails, escuta um CD de Jorge Veiga e disserta sobre o papel da rádio para os negros do país que a eles deve, quase sempre nega, e paga em parca moeda. “‘O Samba Pede Passagem’ surgiu como resistência. É um resgate da cultura afrodescendente, é dar dignidade e identificação a ela”.
Moisés conhece as trilhas da música que retoma em seu programa. Muitas delas ele fez em pessoa. Locutor por vocação, pesquisador por costume e sambista de nascença, ele teve seus primeiros contatos com música quando criança, na cidade de Ourinhos. Aos 13 anos, já tocava em roda de samba do interior, manjedoura dos ritmos africanos que dariam no samba paulista. “Fui criado em igreja Metodista. Meu irmão e eu tocávamos num bloco da cidade e as pessoas falavam: que coisa horrível, os filhos do Dito Rocha nessa coisa de malandro”, lembra. Ao fim dos anos 50, deixou a província e rumou a São Paulo. Em pouco tempo já estava envolvido com os bambas da capital. “Eu ia nas rodas de Pirituba naquela época”
Um período como pracinha no canal de Suez, no Oriente Médio, deu a chance de Moisés se tornar crooner do conjunto Brazilian Boys. A vontade de viver de música só fez aumentar. De volta ao Brasil em 65, o jovem decidiu dar a cara tapa. Ligou para a rádio Cometa e, como manda a cartilha das coincidências, recebeu um convite inesperado. “Fui ver um horário para gravar e, quando liguei, o Domingos De Lello, diretor, disse: saiu um locutor aqui e, conversando com você, acho que você se daria bem”, diz. Estava certo. Moisés se deu bem e começou a carreira de radialista em 67.
Desde então, seu trabalho nunca se resumiu ao microfone. Trabalhou como assistente de locução, produtor, repórter. Ia pra rua, terreiros, escolas de samba, botecos, comunidades, casas elegantes. “Tive o prazer de entrevistar o Dick Farney, o Lúcio Alves, o Nelson Cavaquinho”. Assim ele vai enumerando a lista de fontes que viraram amigos, amigos que viraram fontes. Plinio Marcos, Nelson Cavaquinho, Dona Ivone Lara, Paulinho da Viola, Monarco, Dona Zica, além do próprio Geraldo Filme. “A velha guarda todinha de SP e do RJ”, diz, sem modéstia da humildade que se precisa para se chegar a tantos lugares.
Seu passo leve no mundo do samba foi o embrião do programa. A convite do diretor da Rádio USP, Leonardo de Castro, Moisés preparou a atração que estrearia em 1978 na grade da emissora. Dois anos depois aconteceu o que ele chama de retomada do samba. “Eu frequentava o Bixiga e um amigo falou de um disco gravado no Rio que era bom, mas não tocava lá. Eu ouvi e toquei direto na rádio”. Era o álbum de estreia do Fundo de Quintal, conhecido por renovar o gênero com a adição de novos instrumentos. Em seguida veio Zeca Pagodinho e a batucada dos tantãs tomava fôlego. “Como dizia Nelson Sargento, o samba agoniza, mas não morre.”
Moisés ressalta o perfil que o programa toma com o tempo. “Não é um vitrolão, só para tocar música. Existe uma conscientização de reverenciar os grandes músicos populares da nossa história”, afirma. A reboque, também se cria um espaço de divulgação e denúncia para o movimentos afro, de grupos a eventos. “Mesmo no período da ditadura a gente fazia isso”. O que o radialista não podia controlar foi a escalada do samba a custo das gravadoras. “Eu vi alunos da USP dizendo que achavam o pagode legal porque era brega, mas isso ajudou a acabar o preconceito. O samba se fixou”, diz.
Para Moisés, a mão que afaga também apunhala. A tomada do gênero pelos grandes selos, a longo prazo, reduziu seu lugar nas rádios em favor de estilos mais rentáveis aos cofres corporativos. “O samba não perde espaço por causa da qualidade, ele perde espaço porque os meios de comunicação manipulam sua veiculação”, afirma. O modismo não derrubou o seu programa que segue no ar no alto dos 35 anos. No currículo constam três prêmios da Associação Paulista de Críticos de Arte, tema de sambas-enredo, uma lista considerável de artistas e fãs do mundo inteiro. “Já recebi pedido do Japão!”, lembra Moisés.
O radialista também tem a certeza de que “O Samba Pede Passagem” é um megafone. “O programa dá voz a periferia”, diz. A música acaba sendo instrumento de questões tão velhas quanto o próprio samba, como o preconceito e o racismo. “O único jeito de acabar com isso é não esmorerecer, a luta tem de ser contínua”, afirma incisivamente num dos poucos momentos que abandona outros afazeres para manter a conversa. Dali a pouco, Moisés encontraria um de seus amigos para uma de suas tantas tarefas do dia. Ele também pensa em passar por alguma quadra de escola ou roda de samba. É quase uma obrigação, mesmo ante as quase 4 mill inscrições que tem de avaliar para a Virada Cultural. Ele também é curador do evento. “Meio curador, meio curandeiro”, brinca. Quem foi que falou que o samba não tem o poder de curar?