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Mítia: Globo anti-globalização

Carlos Nader, 36, homem de mídia. Seu e-mail é: carlos_nader@hotmail.com
Guerra é entretenimento. Da luta nos territórios ocupados por Israel à guerra civil das cidades brasileiras, vários conflitos bélicos são diariamente empacotados e distribuídos pelos diversos canais da mídia para entreter o público. Invertida, a equação também é verdadeira. Entretenimento é guerra. Mídia é guerra. As forças armadas tradicionais lutam por espaços exteriores e geográficos. As forças da mídia lutam para conquistar um lugar muito mais precioso. O território virtual da sua mente. O espaço interior ao seu coração.

É guerra. O próprio jargão da mídia dá a bandeira. A ordem é ‘lançar’ um veículo, ‘penetrar’ uma região, ‘atingir’ o leitor, dar um ‘furo’ de reportagem, definir o ‘público-alvo’, criar um ‘blockbuster’, fazer a notícia cair como uma ‘bomba’, ganhar a ‘guerra’ da audiência. A própria palavra para a qual converge o futuro de toda a mídia também tem uma origem militar: ‘tela’. Na Idade Média, ‘tela’ (em francês ‘écran’ e em inglês ‘screen’, a mesma raiz de ‘escudo’) foi o substantivo criado para dar nome ao muro provisório que separava dois exércitos adversários. Hoje, não é preciso ser nenhum McLuhan para perceber que a ‘tela’ funciona de fato como um escudo. Totalmente às avessas. Não protege o espectador. Ao contrário, bombardeia.

Como no mundo militar, o espectro de forças da mídia vai de superpotências transnacionais a grupos locais de guerrilha. Da AOL Time Warner à revista Caros Amigos. Da Disney à Gazeta de Pinheiros. Da Bertelsmann à TRIP. É uma guerra de mil fronts. Nenhum país entendeu isso tão bem quanto os Estados Unidos. Desde o começo do século, a política externa americana opera numa estranha e eficiente dualidade entre corpo e mente. A estratégia de dominação, hoje apelidada pelos seus próprios operadores de ‘globalização’, se baseia numa dobradinha entre a sombra ameaçadora de um bombardeio nos corpos do planeta e a imagem real de um bombardeio nas mentes do planeta.

PIOR SEM ELES
Então deixa eu me fingir um pouco de homem pragmático. É nesse contexto de guerra total que quero parar para pensar sobre a Rede Globo. A corporação do Jardim Botânico é o maior e talvez o único braço armado brasileiro na guerra mundial da informação. Para o mal e para o bem, a falange dos Marinho é de longe o grupo mais preparado para defender e difundir uma identidade brasileira no mundo. Claro que eu sei que estou falando da empresa que desde sua fundação é chamada de testa de ferro de interesses estrangeiros. Na maioria das vezes, injustamente. Claro que eu sei que estou falando da rede que foi acusada de manipular e banalizar a opinião pública em questões cruciais. Na maioria das vezes, as acusações são justas.

A ação de qualquer exército é sempre mais nefasta quando aponta as armas para dentro do próprio país. Mas eu proponho um exercício simples. Em termos de comunicação de massa, o que sobraria no Brasil se a Rede Globo simplesmente desaparecesse?

LUZ NO FIM DA TELA
A resposta não é das mais animadoras. A segunda rede de TV, o SBT, é pouco mais que um camelódromo eletrônico. Sua preocupação com os bons tratos à identidade nacional é quase zero. Não vou negar que seja uma emissora muito brasileira. As facetas mais esculhambadas da nossa identidade acabam saindo pela culatra, com um hiper-realismo avassalador, em bons e maus momentos de programas como a Praça é Nossa, Show do Milhão, Ratinho ou Topa Tudo por Dinheiro. Já o segundo grupo de mídia do país, o Abril, é empresarialmente mais respeitável. Mas ele sim é que tem demonstrado – do Pato Donald à MTV – ser o verdadeiro portal aberto e de mão quase única para a entrada da identidade estrangeira no país, mesmo descontadas exceções tão maravilhosas quanto raras como a ex-revista Realidade e o fundamental projeto Música do Brasil.

Com uma constância surpreendente, a Rede Globo tem produzido produtos de comunicação de massa primorosamente brasileiros como Gabriela, Escrava Isaura, Buzina do Chacrinha, Vale-Tudo, Programa Legal, O Auto da Compadecida, A Invenção do Brasil, Retrato Falado… eu gastaria a coluna inteira citando nomes. São trabalhos de repercussão internacional cuja brasilidade não se baseia numa abordagem purista ou tipicalizante do país. Pelo contrário: são obras canibais, abertas ao ingrediente real do mundo exterior. Se são monumentos virtuais à identidade brasileira, é pelo simples fato de serem criados por cérebros livre- pensantes. E não por mentes tementes aos valores e referências estrangeiras.

Com a distância dos anos, fica claro que os bons programas da Globo não são apenas projetos de um ou outro diretor excepcional. É uma vocação da corporação que, entra executivo, sai executivo, parece realmente empenhada em difundir uma identidade brasileira. Difundiria melhor, é verdade, se a corporação fosse menos corporativista. Aqui, sim, valeria copiar uma virtude democrática da TV estrangeira. As emissoras européias e americanas são obrigadas por lei a comprar um percentual significativo de produções independentes para veicular na sua programação. É uma postura bem mais representativa e fiel à própria população. Mas isso é tema para outra coluna. Por enquanto, já que vivemos uma guerra mundial, viva a Globo.

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