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Mítia

Lembrar. A intenção de toda matéria é marcar. Lembrar. Eu mesmo estou tentandoesculpir frases que queimem com ferroquente um pedaço do teu cérebro, meuquerido leitor. Desculpe o exagero e perdoe osensacionalismo, mas hoje em dia quase todojornalismo é sensacionalista, no sentido estrito dapalavra. Toda matéria quer causar uma sensação.Este é o sentido da vida midiática. Marcar comsensações. Claro que esta não é a intenção única,mas os slogans surrados do tipo ‘apuração dosfatos’ ou ‘compromisso com a verdade’ vêm, naprática, se transformando em mantras vazios, emmeros slogans de auto-ajuda corporativa. A mídia quer sobretudo contar uma boa história. Aocontrário de muitos veículos de comunicação que jápropuseram o tema ‘fatos que marcaram’, a Tripacerta na mosca ao contrapor ‘matérias quemarcaram’. O fato não é a matéria. A diferença óbviaé obstinadamente estuprada pelo simplismo de mercado da nova era midiada. Há fortíssimosinteresses em jogo para que se confunda fato e notícia. É difícil manter o discernimento. A matérianão é o fato. A matéria da mídia nasce da transa do jornalista com o fato. E a partir daí tem vidaprópria. Quando me perguntaram pela primeira vez qual a matéria mais marcante do século, minha menteintoxicada de notícias teve muita dificuldade de lembrar e escolher. São dezenas de históriastodos os dias. Se antigamente a censura era regida pelo caminho torpe da proibição,hoje ela se dá pela via torta do excesso de informação. Uma matéria apaga a outra. Aoverdose tende a transformar os miolos do espectador em sopa de letras e imagens. Não éapenas a televisão que, como disse Jean-Luc Godard, ‘produz o esquecimento a trinta quadros porsegundo’. Paradoxalmente, é toda a mídia que, na fome de querer marcar, apaga. É toda aimprensa que, na sede de imprimir, deleta. Dentro deste vendaval, onde tudo que é virtual já vemdesmanchado no ar, que fatores podem fazer um fato de mídia ser lembrado? Que ingredientespodem elevar um evento efêmero da chamada vida real ao Olimpo da memória? Que seringapode injetar uma matéria jornalística na veia da consciência coletiva? É óbvio que eu não conheço a resposta, mas a primeira história que me vem à cabeça, nem seibem porque, é a tragédia do midiopata que metralhou a platéia do cinema do Shopping Morumbi.O doente também queria marcar, também queria ser lembrado, e declarou: ‘Eu pensei em usaruma granada mas achei que a metralhadora ia dar mais impacto na imprensa’. O fato de que umassassino, ao premeditar seu crime, acabe agindo como assessor de imprensa de si mesmo não étão surpreendente num país que, além de técnicos de futebol, já tem dezenas de milhões dehomens de mídia. Como um ‘media-artist’ pervertido, o psicopata acabou realizando umaperformance que mimetiza de modo macabro as intenções da própria mídia. Ele literalmentetransformou a platéia em público-alvo. Numa época em que o grande público é, dia enoite, metralhado de informação, o midiopata do shopping conseguiu imprimir suamatéria na memória das pessoas. A um custo altíssimo, ele conseguiu transformar ofato em mito. TRANSE MIDIÁTICO Não é preciso ressuscitar Jung para concluir que os sociopatas estão entre os maisreveladores caricaturistas da época em que vivem. Inteiramente possuídos por umavisão mítica do mundo, estes desajustados acabam traçando um diagnóstico ingratomas perspicaz da sociedade que os produziu. Sua imaginação desbragadamente míticatem leis bem diferentes daquelas que regem o pensamento racional. Isso não querdizer que pensar miticamente seja uma atitude exclusiva de maluco, nem de poeta daGrécia antiga ou de freqüentador de candomblé. Sem perceber, o animal racionalcontemporâneo, que a sociedade do espetáculo transformou em espectador, tambémage e pensa miticamente. Eu não conheço, por exemplo, uma só pessoa que tenha idoao cinema nas semanas seguintes ao crime do shopping e que não tenha passado asduas horas com a pulga atrás da orelha, temendo a entrada de algum maníaco na sala.E de que adianta alguma lógica ponderar que esta possibilidade é menor que a quedade um raio na cabeça? O mito tem mais poder. Um dos artigos do contrato nãodeclarado entre as mentes que produzem e as que consomem mídia diz que umamatéria jornalística, para ser lembrada, precisa ter a simplicidade, o impacto e auniversalidade de um mito. Qualquer detalhe de maior complexidade ou ambigüidade,mesmo que fundamentalmente ligado à realidade dos fatos, acaba sendo limado emalguma etapa da produção ou recepção da história. Em todas as áreas, da segurançapública à economia, da moda à política partidária, a relação da sociedade com omundo real é inevitavelmente mediada por mitos. Não sou daqueles que queremenxergar qualquer degradação moral ou social nesse processo, desde que ele sejatransparente. O problema é que ele não é. A imensa maioria do público ‘mitralhado’ainda confunde valor real e valor midiado. Fato e mito. Quem não está confuso continuamal informado. Nos raros momentos em que o espectador acorda do transe midiático vem à tonaa pergunta inevitável: ‘Quais são os valores que realmente importam?’ Está cada vez mais difícilde se lembrar. Carlos Nader, homem de mídia.

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