VOCÊ ESTÁ EM 1978. AGORA. ENTÃO CHEGAM DOIS PROFETAS. OS DOIS TEM UMA VISÃO
DO FUTURO PRA TE CONTAR. O PRIMEIRO DIZ QUE NO ANO 2000 O HOMEM VAI VIAJAR ATÉ
MARTE, O SEGUNDO DIZ QUE NO FINAL DO MILÊNIO VAI EXISTIR UM PADRE REZANDO MISSA
E FAZENDO GINÁSTICA AERÓBICA AO MESMO TEMPO, PARA O DELÍRIO DE MILHÕES DE
ESPECTADORES EM TRANSE. EM QUEM VOCÊ IA ACREDITAR?Você talvez nem tivesse nascido em
1978, mas quem estava lá lembra
bem: ninguém tinha a menor dúvida
de que o homem iria chegar a Marte.
O planeta vermelho ficava ali na
esquina. Fácil. Agora, quem iria
imaginar, naquela época, que num
futuro tão próximo alguém inventaria
um gênero tão esdrúxulo quanto a
‘aeromissa’? Mesmo que fosse uma
reencarnação do Nostradamus, o
profeta precisaria ter tomado muito
LSD pra ter uma visão dessas. Pois
é. O fato é que nenhum homem
pisou em Marte e o padre Marcelo
está saltitando, lépido e faceiro,
sobre os palcos do Senhor. E não dá
pra dizer que a picada chegou ao
fim. Tem chão pela frente. Como
disse um amigo meu, do jeito que as
coisas vão é possível que o padre
Marcelo ainda acabe na banheira do
Gugu.
Coisas fantásticas estão
acontecendo. Agora que o futuro já
chegou, fica mais fácil enxergar. Se
no plano físico o homem não
conseguiu ir além da Lua, no plano
da virtualidade ele foi muito mais
longe. O universo virtual é também um espaço sideral que todos nós exploramos diariamente, não com
naves intergaláticas mas através de todos os canais da mídia. Tela da TV, página de revista, Internet.
As coisas mais inacreditáveis do ‘futuro’ estão acontecendo no mundo do entretenimento. É neste
mundo que fazemos contato com o padre Marcelo e com todas as outras espécies de celebridades. No
verdadeiro ano 2000, as celebridades são os verdadeiros extraterrestres. São seres virtuais feitos não
de carne e osso mas de tinta e cátodos explodindo nas telas. São seres que só existem de fato dentro
das nossas cabeças – e, em alguns casos mais graves, dentro das cabeças deles mesmos.
As celebridades invadiram e colonizaram as nossas mentes. Celebridade, a gente sabe, é uma pessoa
famosa porque é famosa. Não precisa bater o recorde dos 100 metros rasos, descobrir a cura da AIDS
ou inventar a máquina do tempo. Na verdade, não precisa nem cantar direito. Precisa simplesmente
aparecer. ‘As celebridades não são apenas protagonistas de nossos noticiários (…), elas estão tão
entranhadas na nossa consciência que muitos indivíduos se dizem mais próximos e mais
apaixonadamente apegados a elas do que aos próprios parentes e amigos. Veja-se a torrente de dor
desencadeada pela súbita morte da princesa Diana em 1997 ou os enlutados que disseram que o
enterro dela era o dia mais triste de suas vidas. Como Diana confirmou, a celebridade é o estado de
graça moderno’.
Esta é a tese central de Vida, o Filme, o iluminador ensaio do colunista do New York Times, Noel
Gabler, lançado recentemente aqui no Brasil pela Cia. das Letras. Com outras palavras, o autor defende
a idéia de que a colonização do mundo virtual se dá às avessas. Foi o entretenimento que conquistou a
realidade. Não o contrário. Vida, o Filme traça um mapa preciso do universo midiático. O livro é um
marco na história da crítica da cultura, que deveria inclusive ser urgentemente incluído no currículo
ginasial. Não é força de expressão, não. O que chamamos de mídia, ou entretenimento, é uma
linguagem no mínimo tão onipresente quanto a Matemática ou a Geografia. E, nesta linguagem, ainda
somos todos analfabetos.
Gabler observa o fato já quase indiscutível de que a própria vida está se transformando num veículo de
comunicação. Um filme. Todos nós estamos virando atores e platéias de um complexo espetáculo vinte
e quatro horas. O show da vida. Todas as áreas da cultura humana estão usando técnicas teatrais.
Políticos, escritores, religiosos, empresários, militares ou criminosos estão inevitavelmente à procura
de um golpe de cena espetacular que os levem ao sucesso. Como diria a Tiazinha, que rouba a cena
assim, fácil, de costas: ‘O importante é o carinho do público, né gente?’ Ou, como diz o autor de Vida,
o Filme, estamos vivendo numa sociedade ‘onde as celebridades se tornam modelos exemplares
porque aprenderam como roubar a cena, independentemente do que tiveram de fazer para roubá-la’.
Como Neal Gabler, eu também nunca acreditei na idéia maniqueísta e moral de que o universo do
entretenimento equivale ao ‘Império do Mal’. Ninguém aqui está pedindo guilhotina para os aristocratas
da celebridade. Tudo tem seu lugar. Numa época em que os mitos tradicionais caducaram, entende-se
que a sociedade precise reinventar novos heróis e histórias. A invasão dos valores espetaculares é
inevitável. É preciso relaxar. Por outro lado, é preciso fazer um esforço grande para tentar entender o
que está acontecendo e tentar dar às coisas um valor mais justo. Caso contrário, continuaremos
confusos e bem informados. E continuaremos fazendo parte de uma sociedade que dá muito mais
importância e atenção à Monica Levinsky que ao ganhador do Prêmio Nobel de Medicina. Ou muito
mais reconhecimento e dinheiro à Adriane Galisteu que ao inventor de um método revolucionário de
educação. Ou muito mais importância ao padre Marcelo que ao poeta João Cabral de Mello Neto.
*Carlos Nader, 35, homem de mídia: Seu e-mail é carlos_nader@hotmail.com