Miopia semântica
Para resolver a crise global: um par de óculos que permita às pessoas verem o invisível
Para resolver a crise global, tenho uma solução inovadora: um par de óculos que permita às pessoas verem o invisível, o "entre" que liga as partes do sistema
Caro Paulo,
Tenho uma ideia genial, absolutamente inovadora, capaz de nos deixar bilionários porque vai criar condições de resolver essa fantástica crise que vivemos. A ideia é muito simples, embora seja dificílima de viabilizar. Primeiro vou te contar como vejo o problema que ela vai resolver, depois conto a ideia.
Olha só: em novembro, governos e bancos centrais fizeram uma reunião para entender a crise e concluíram que a grande razão do desastre era a ignorância deles sobre como o mercado estava funcionando. Chamaram essa ignorância de “riscos mal dimensionados”(!!). Depois de muita conversa, entenderam que esse risco “mal dimensionado” tinha um nome: “risco sistêmico”. Isto é, reconheceram que o mundo globalizado é interdependente, que a decisão de um país pode afetar a economia do outro da mesma maneira que a derrubada de uma floresta de um lado do planeta afeta o clima do planeta inteiro ou da mesma maneira que o peido de alguém numa reunião afeta o ar que todos respiram. Isso é realidade sistêmica.
Depois dessa conclusão, os países combinaram que iam se unir, coordenar suas ações e cooperar mutuamente na busca de soluções. Óbvio. A reunião foi tão bem que o Lula voltou de Washington com um comentário otimista que fiz questão de registrar: “Nunca vi uma reunião com tanta maturidade!”. Beleza.
Mas o que se viu em seguida foi uma onda de medidas de protecionismo nacionalista – do tipo se o pirão é pouco, meu pirão primeiro –, desrespeitando a interdependência do sistema e, consequentemente, aumentando o tal do risco sistêmico. Em outras palavras, mais do mesmo: a mesma visão fragmentada e individualista que só vê as partes e não vê o todo. Para ver o todo não basta ver todas as partes. É preciso ver a relação que existe entre as partes. Porque é no “entre” que está o problema.
Muito bem. Agora que você sabe qual é o problema vou contar a minha valiosíssima ideia inovadora. Um par de óculos que permita às pessoas verem o invisível, o “entre”, a dinâmica interdependente do sistema. Com esse par de óculos as pessoas seriam capazes de ver com clareza o impacto de sua decisão em todo o sistema; melhor ainda, antes de tomar as decisões veriam a complexidade da realidade interdependente e aí, bem dimensionado o risco, tomariam providências inovadoras, mais realistas, efetivas, inteligentes, que, de fato, respeitariam o celebrado diagnóstico.
INTERVENÇÃO CIRÚRGICA
Talvez um par de óculos não seja uma solução definitiva. Vai que um poderoso esquece de usar os óculos e toma uma decisão que beneficia apenas a si e a seu país e coloca todo o sistema em crise de novo. O ideal seria uma intervenção na gestão do cérebro, no caso, uma intervenção cirúrgica. Faríamos uma mudança nas sinapses que mantêm o modelo mental mecanicista e individualista das pessoas. Instalaríamos um dispositivo que privilegiaria a atuação holística do hemisfério direito do cérebro – impedindo o tradicional domínio do hemisfério esquerdo, com sua eficiência em fragmentar e reduzir a realidade em partes isoladas e desconexas. Se quiser saber mais sobre as especialidades dos hemisférios do cérebro, leia O cérebro do futuro – A revolução do lado direito do cérebro, de Daniel H. Pink, da Elsevier/Campus.
Pensando bem, não faço questão de ficar muito rico com essa inovação. Eu distribuiria de graça, do mesmo jeito que fazemos com as camisinhas para garantir sexo seguro. O slogan também seria algo como “Decisão segura – Use antes de decidir”. Posso não ficar rico, mas pelo menos garanto que o que já tenho não entra em risco.
Um abraço,
Ricardo
*Ricardo Guimarães, 60, é presidente da Thymus Branding. Seu e-mail é rguimaraes@trip.com.br