Minha prisão
Nosso colunista-encarcerado lembra o dia em que caiu nas garras da polícia
Quando cheguei ao hotel em que meus amigos estavam hospedados, percebi, tudo estava cercado pela polícia. Fiquei imóvel. O mundo desabava, o medo detonou alarmes. Claro, eles também me viram. Gritaram que parasse. Não dava mais. Eu já não pensava. Era puro instinto. Balas choveram. A vida explodia trovões em todas as dimensões do universo. Corri desconsertado para todos os lados. As ruas centrais de São Paulo fluíam sob meus pés. Era a hora mais fria da noite e todo o espaço se abria em balas que traçavam luminosas. Atirei para trás sem ver. Só queria me livrar.
Em frente apareceu, como que do nada, um homem de metralhadora. Saltei para trás de um carro. O matraquear da poderosa arma me ensurdeceu. O veículo estremecia como um elefante ferido. Transformei-me em uma folha de jornal e escorri pela enxurrada que descia pela guia. O homem se aproximava, encorajado. Descarreguei o revólver a esmo. Chovia. Quase engoli as balas de volta de tanto tiro que veio em resposta. A noite parecia sangrar na garoa que molhava o vento frio.
Próximo, rajadas e tiros de armas de grande potência contra o som oco de revólveres de baixo calibre. Era uma guerra. A vida parecia destampar-se dos bueiros de rua. Entrei no chão e desci ao nada. Do nada que eu queria ser naquele momento. Corri por entre carros, cego e sem direção. Perdi o sentido de espaço, o tempo fluía do suor que encharcava meu corpo.
Quando cessou aquele som de selva e gritos mecânicos, me alcançaram. Estiquei no chão jogando a arma aos pés do primeiro policial que se aproximou. Fui algemado e levado, na ponta da metralhadora, para a calçada. O tica xingava, zurrava e dava coices. Quando viramos a esquina, encontramos um policial no chão, baleado e se esvaindo em sangue. Outros investigadores o socorriam. Atravessamos a rua. Na outra calçada, outro tira caído, também baleado. Quando chegamos perto, o homem tentou recuperar a arma no chão para atirar em mim. O policial que me conduzia não permitiu.
A tortura é de lei
Os meus amigos haviam fugido. No tiroteio que travaram para escapar, acertaram os tiros. Apenas o Telinho havia sido preso, como eu. Estávamos sendo presos pela equipe dois contra roubos do DEIC. O chefe da equipe era o Nagib, um dos investigadores baleados. Dezenove de maio de 1972. Eram tempos de chumbo.
Fomos levados para o camburão. Ali me dei conta de toda minha desgraça, como que acordado por um choque de mil volts. Nada tinha a mínima chance de não ser. Eu acabara com minha vida. Completara 19 anos quinze dias atrás. Sabia, seria esfolado vivo agora. Os investigadores, com certeza, iriam querer saber dos companheiros que os balearam e fugiram. Eu estava ali, na mão deles, para que fizessem de mim o que quisessem. Matar seria o mínimo. A tortura impiedosa, meu destino imediato.
(Continua...)