Minha monga, meu amor
Arthur Veríssimo vai a Belo Horizonte em busca da lendária mulher-macaca
O dia em que nosso repórter excepcional reviveu seus mais tenros sonhos de infância em plena savana belorizontina em busca da lendária mulher-macaca
Não adiantava se benzer, virar a cara, ter medinho ou ficar de olhos fechados. Era 1975 e os mistérios e enigmas daquela linda moça metamorfoseada em gorila vinham embalados numa atmosfera de medo, atração e repulsa. Aquela tarde no Playcenter não sai de minha memória até hoje. Todos sabíamos que era impossível que aquilo fosse verdade, mas, na dúvida, era sempre melhor sair correndo do que ficar com a macaca. E voltar dali a algum tempo ao parque para tomar outros sustos e rir do desespero alheio – e do nosso próprio.
Eis que, muitas e muitas voltas do mundo depois, eu estava no Parque Guanabara, na lagoa da Pampulha, Belo Horizonte, prestes a entrar novamente numa legítima atração Monga, ao lado da maior expert no assunto no planeta. Há anos, a historiadora e cineasta paulistana Cris Siqueira cruza Brasil e Estados Unidos dentro de circos grandes e pequenos e seus sideshows (os parques anexos) e freakshows (shows de aberrações, legítimas e fake). A paixão de Cris pelo assunto a levou a embarcar no Jim Zajicek’s Big Circus Show e iniciar o documentário Monga – A verdadeira história da mulher-macaca no Brasil e nos Estados Unidos, em fase de produção.
A impecável Monga do Parque Guanabara, Cris garante, é uma das últimas do Brasil. O parque está instalado há mais de 30 anos com todas aquelas atrações tradicionais: roda-gigante, carrossel, trem fantasma, Ciclone, floresta encantada e, a nossa motivação e objeto de desejo, a MONGA!
O dia estava ensolarado e a criançada se esbaldava nos brinquedos. Excitadíssimos, fomos magnetizados por uma majestosa fachada rica em adereços. Admirávamos embevecidos as silhuetas em negrito nas laterais e o imenso rosto do gorila com suas mandíbulas escancaradas quando o time que orquestra o espetáculo da Monga se aproximou. Claudio, o gerente do local, interage com suas duas mirabolantes “mongas” Rosileni e Rayane.
O show da Monga ocorre há cinco anos no Parque Guanabara. A duração da transformação é de quatro minutos e, dependendo do fluxo do público, eles realizam em dias de movimento uma média de 15 espetáculos por hora. O trabalho é pesado. Com o parque aberto das 8 às 21 horas são mais de 120 shows diários.
Cris Siqueira não para de investigar e bisbilhotar. Pergunta sobre detalhes cênicos, performance e participação do público. Emocionada, revela que o nome “Monga” foi criado pelo artista Romeu Del Duque, responsável pela atração original do Playcenter – que durou de 1973 a 1986. Segundo Cris, a atração ficou conhecida a partir de meras duas unidades: uma fixa em São Paulo e outra rodando pelo país. Há uma teoria de que a Monga seria brasileira – e tenha se espalhado pelo mundo com nomes como Conga, Samira e Murza.
Da sua cartola mágica, Cris retira a espectral Lurdez da Luz, a rapper paulista convertida em Monga para nossas lentes e autora da canção-tema do documentário. Na porta de entrada do castelinho da Monga é entoado um chamado do além: “Venha presenciar a fantástica transformação de uma jovem mulher em criatura das trevas: o terrível gorila canibal! Tudo começou quando nossa infortunada jovem participava de um safári no coração da selva africana. Assista à mais assustadora transformação que você já ousou imaginar. Mas cuidado! Apenas os mais corajosos conseguem viver a experiência e manter sua sanidade. Venha acompanhar, passo a passo, como é possível que uma bela jovem, possuída pela maldição, venha a transformar-se em uma criatura apavorante! Muitos pesquisadores tentaram descobrir qual é o mistério existente por trás da incrível transformação, mas todos os esforços foram em vão”.
Como um enxame de abelhas, uma multidão de crianças e seus respectivos pais entram em fila. Uma simbiose de curiosidade sacode os enfileirados. Abre-se a boca do gorila e todos se lançam para o bizarro reduto da Monga. Na diminuta estrutura, a plateia se espreme. A voz do mestre de cerimônia do além ecoa dizendo para todos se prepararem para a transformação, o suspense é rachado quando percebo, ao fundo, nossa Lurdez da Luz dentro de um cubículo fechado por grades. Como uma centopeia, Lurdez se insinua para a plateia com seu biquíni. A metamorfose começa lentamente. Dentro da câmara semiescura, a Monga começa a ficar peluda, suas mãos ficam monstruosas e a plateia se agita. Ela está metade mulher e metade gorila. Os efeitos especiais são requintados. Parte do público se borra de medo e outros dão risadinhas contidas. O MC grita: “Fera, desperte!”, e, numa fração de segundo, o gorilão solta um urro pavoroso. Salta da jaula e vai pra cima, ameaçando a plateia. Sua aparição é um “deus nos acuda”.
Fico congelado nas extremidades. A encenação é impecável e me traz à mente todas as Mongas que já vivi e amei. A trilha sonora é superada por gritos, berros, gemidos e corre-corre. No embalo, o MC acalma a Monga, e sua fúria é controlada. O gorilão retorna para a jaula e num piscar tudo volta à normalidade.
"Uma energia das entranhas da natureza me domina. Entro no transe da monga e sofro a mutação genética"
O espetáculo é rapidinho, mas os efeitos colaterais permanecem. Nos bastidores, não resisto e imploro ao organizador para realizar o sonho de me transformar em macaco. Recebo sinal verde. Tiro da mochila minha bata de Fred Flintstone e vou para o cubículo. Uma energia das entranhas da natureza me domina. Parece brincadeira, mas entro no transe da Monga e sofro a mutação genética. Viro a macaca. Não mordo ninguém e volto ao meu estado relaxado de repórter excepcional.
No lado de fora, Cris, freneticamente, esclarece que esse truque de ilusionismo conhecido como “pepper’s ghost” foi criado na Inglaterra no século 19, baseado em jogo de espelhos. E completa, misteriosa: “Eu acredito que algumas mulheres tenham o poder de se transformar em macaca. Para mim essas são as Mongas verdadeiras, não as mulheres com hipertricose (excesso de pelos no corpo). As Mongas verdadeiras andam disfarçadas de Mongas falsas. Você acha que tem lá o show montado, fantasia de macaca, mágica de palco, mas não tem nada disso, tudo fachada. Só que não dá para saber quem é quem. Se eu topar com uma Monga verdadeira, vou fingir que é falsa. Do mesmo jeito que não revelo o segredo da transformação, não vou revelar o segredo delas”.
E eu deixo o parque com a dúvida: quem será a Monga verdadeira? Cris Siqueira ou Lurdez da Luz? O mistério continua...