Milly Lacombe: Deus está morto
Nossa colunista escreve sobre a morte de Maradona: "Diego era poeta e a bola era sua caneta"
O que é o drible se não uma mentira que sempre diz a verdade? A definição foi usada por Jean Cocteau para se referir ao que faz um poeta, mas se encaixa perfeitamente ao jogo e a alguns de seus protagonistas. Diego Armando Maradona foi o maior dos mentirosos. Diego mentiu esplendorosamente com os quadris, criou uma linguagem que era só sua escrita com seu sacro-santo pé esquerdo, uma liturgia em si. Diego era poeta porque poetas fazem sonhar, inauguram portais, encorajam que a gente siga existindo a despeito de todo o absurdo. Diego era poeta e a bola era sua caneta.
Diego é inseparável de tudo o que representou, indistinguível fragmentadamente da totalidade das formas com que se inseriu nesse mundo: jogador fora de série, homem político, amigo de Fidel, de Lula, de Chávez, apaixonado por Che, revoltado com injustiças sociais, usuário e viciado em drogas ilegais e legais. Não somos uma inscrição social apenas – somos o conjunto delas, um complexo de símbolos e de signos que se misturam naquilo que chamamos de eu e então nos fincam no mundo. E Maradona não era apaixonante apesar delas, mas justamente por causa delas. E por causa delas se fincou como um gigante nesse mundo.
O escritor argelino Albert Camus disse que as coisas mais importantes que aprendeu na vida, aprendeu com o futebol. O futebol de fato ensina aos que estão dispostos a aprender com ele. Ensina sobre a beleza da vitória e a importância da derrota, sobre a poesia do drible, sobre cair e levantar, sobre cair e se quebrar, sobre nossas mais profundas contradições. “A revolta”, escreveu Camus, “é o próprio movimento da vida, que não pode ser negada sem que se renuncie a viver”. Maradona era o movimento da vida e exerceu essa renúncia com máxima plenitude.
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Quando fazia gol com a mão, quando deixava oito ingleses no chão, quando obrigava cinco holandeses a marcá-lo, quando gritava como torcedor apaixonado na arquibancada por seu Boca, quando mandava os opressores tomarem no cu, quando se overdosava para tentar escapar do absurdo que é existir. O mesmo Camus escreveu que a vida é uma obstinação da qual ninguém pode se salvar sozinho. E não há como se salvar sozinho porque ninguém existe sozinho.
Ao colocar a bola em seu pé esquerdo e correr com ela grudada, desafiando probabilidades físicas, ele nos elevava ao mistério que é existir, ao delírio que é estarmos aqui e agora, vivos e respirando, testemunhando todo o sagrado que é colocarmos os dois pés no momento presente, de olhos cravados no esplendor do jogo, deixando que um emaranhado de emoções nos inunde e que, por um instante, sintamos a eternidade que só existe no aqui e agora. Era isso que Maradona fazia em campo.
Mas fora dele, Maradona gritava que não estávamos sós quando se perdia em berros de torcedor na arquibancada. Olhos arregalados, punho em riste, dedos do meio no ar: não estamos sós, não existimos separadamente, estamos nos afetando a todo o instante, ele parecia querer dizer. Somos atravessados por dores, sofrimentos, paixões, contradições, fraquezas, medos, mistérios, encantos, incertezas – e Maradona falava sobre essas coisas. Quando viajava para se encontrar com líderes de movimentos sociais de outros países ele estava no nosso time, jogava o único jogo possível, tabelava deliciosamente com todos e com todas nós, pobres mortais – e um deus não precisaria ter ido tão longe. Mas ele foi.
Gostam de dizer que o futebol é mais importante que a vida, e eu acredito que alguma verdade more nessa declaração. Mas para que acessemos essa verdade temos que entender o futebol para além do campo: futebol é política e todas as suas camadas, em toda a sua complexidade e nuances. Dentro e fora das quatro linhas. Um gol de mão pode ser uma tremenda injustiça mas, dependendo do contexto, da circunstância e do adversário, pode ser vingança decolonial, desforra moral, justiça poética.
Fôssemos apaixonados e intensos como foi Maradona viveríamos num mundo mais pulsante, mais vibrante, menos injusto, menos desumano. Um mundo onde todos teriam acesso à moradia, à saúde e à educação e onde uma tragédia como o VAR nem seria considerada, muito menos oficializada porque, ao contrário da vida, o futebol comporta injustiças, e algumas delas são lindas.
Obrigada por me ensinar coisas sobre a condição humana e sobre a capacidade divina, don Diego. Obrigada por me emocionar mesmo vestindo o manto rival. Obrigada por ter me aberto tantos portais e por fazer com que eu siga acreditando na indignação dos apaixonados, dos desencaixados, dos perdidos, dos desajuizados, dos desobedientes, dos revoltados. Que essa última travessia tenha o som de uma arquibancada lotada gritando seu nome, saudando sua existência e seus dribles. Gracias, Diego.