O que você vai ser quando crescer?
Pensa o que vai te dar dinheiro, o que vai fazer você ser bem-sucedido
Diz aí? Vai ser médico? Engenheiro? Trabalhar no mercado financeiro? Ah, já sei, advogado. Não? Então, o quê? Me diz o que você vai ser, quem você vai ser. A gente espera muito de você. Sua família, claro, mas a sociedade também. Não pode fracassar. Não pode titubear. Tem que ser alguém na vida. Pensa aí então o que você vai ser, o que vai te dar dinheiro, o que vai fazer você ser bem-sucedido.
O que te define é o trabalho, o dinheiro que conseguir acumular, as roupas novas que vai poder comprar, os carros caros na garagem de uma casa grande, com empregados para fazer a cama em que você dorme, lavar a louça que você suja, catar as roupas que você vai largando pelo chão, levar seus filhos à escola, ao balé, ao clube, ao inglês. Isso é sucesso na vida. Faça o que for preciso para chegar lá. Esquece os outros. O mundo é competitivo, o ser humano é cruel, é assim mesmo. Vai e faz sem olhar para o lado.
É uma pena que existam tantos miseráveis no mundo, mas a culpa não é sua. Esquece os corpos atirados pelas ruas da cidade. Você não tem nada a ver com isso. E se ganhar bastante dinheiro depois, pode doar um pouquinho, fazer uma caridade como seu pai faz. Quem trabalha não passa apuro, né? Agora, quem não gosta de trabalhar, aí já viu.
Seu pai acumulou riqueza como? Trabalhando. Seu avô, idem. São pessoas íntegras. A gente aqui é descendente de gente honesta, que fez fortuna trabalhando duro com café na fazenda, isso bem lá atrás, muito lá atrás, ainda na época da escravidão. Mas não quero mudar o assunto: a gente tá falando sobre o seu futuro.
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Eu me preocupo com você, meu filho. Esse país não tem jeito, você sabe que é só roubalheira. A sorte é que seu pai é inteligente e sabe o que faz com o nosso dinheiro. Ou você acha que ele vai dar grana para o governo? Dinheiro do trabalho suado dele? Ah, por favor. Graças a Deus a gente tem aquela grana fora do Brasil. Tá lá para a sua segurança, para o seu futuro.
Mas, mesmo assim, você precisa fazer a sua parte e trabalhar. E outra coisa: tratar todo mundo bem. Dar bom dia e boa noite para quem te serve, perguntar se precisam de alguma coisa etc. e tal, porque você não quer um inimigo dentro de casa ou no trabalho, né? Trata com carinho, oferece para pagar escola da filha, dá presente no aniversário, essa gente adora isso aí. E assim você nunca vai ter problema.
Outra coisa: casa com uma mulher que vai cuidar bem de você, que se dê ao respeito, capaz de organizar a sua casa e que seja educada e bonita. O amor é uma coisa que a gente constrói, vem com o tempo. Não se preocupa com isso agora. Foca no futuro porque a situação tá feia.
Estão dizendo coisas estranhas por aí, tentando criar uma guerra de classe, jogando eles contra a gente. Que ridículo. Você acha que eu odeio a Cida, por exemplo? Acha? Eu amo ela e a comida dela. Mas aí vem esse povo falando em igualdade e liberdade. Igualdade? A gente nunca vai ser igual. Isso é uma besteira. Seu pai fez fortuna porque é homem inteligente, não tem tanta gente como ele por aí. O Zé, por exemplo, é um ótimo motorista, mas me diz quem é mais inteligente: ele ou seu pai? Seu pai fala três línguas, o Zé mal fala uma. Mas é de confiança e muito grato pelo emprego que tem. Com esse tanto de gente sem emprego, ele tem que ser grato mesmo. Povo sem emprego falando em liberdade é demais para mim. Liberdade? Ué. A escravidão acabou faz tempo, não somos todos livres? Olha, não dá ouvidos à gente que fala essas coisas.
Trabalho em primeiro lugar
Outro dia li que coragem não é sair por aí explodindo tudo o que te ameaça feito um Rambo, é dizer que ama sem saber se vai escutar a mesma coisa de volta. Quanta bobagem. Como não vamos acabar com quem ameaça a gente? Se o ladrão no sinal tentar me assaltar, acho bem ok que a polícia acabe com ele. Você sabe quanto custou esse relógio que seu pai me deu? E que ele só pôde comprar porque trabalha desde os 20 com seu avô? Vamos falar a verdade. Você sabe como seu pai trabalha, você vê que ele quase nunca tá em casa, quase nunca consegue jantar com a gente.
Ai, meu filho, tô achando ótimo conversar com você assim sobre as coisas que importam, não quero perder tempo falando dos inevitáveis sofrimentos da vida. Quando ficar triste, vai ao médico e toma alguma coisa. Passa rápido e assim você pode voltar ao trabalho. Nada é mais importante do que o trabalho, guarda bem isso.
Decide então o que você vai fazer da vida. Mas não me venha com músico, ator, escritor, fazer trabalhos voluntários pela África. Pelo amor de Deus, nunca me dê esse desgosto. Se quer ajudar alguém, trabalha e doa um pouquinho, se estiver sobrando, mas não me mata de tristeza.
Seu primo tá aí tentando ser ator. Você sabe no que deu, né? Vive rindo, e sabemos bem por que, grudado naquele amigo que pra mim é gay, só fala em filosofia, em poesia, e agora veio com esse papo de ser ativista sei lá do quê, de lutar por negros e mulheres. Coitado. Tenho muita pena da minha irmã. Mas tinha que dar nisso. Foi casar com aquele inútil daquele professor de história que leva ela para passar o fim de semana em pousadinhas nas montanhas de Mauá, que nunca deu para ela um presente decente, uma joia. Diz que ele faz ela rir e que faz amor como ninguém, mas quem se importa?
Quem vive de riso e de amor, meu filho? Você, me diga quem vive de amor, por favor. Que mundo é esse onde as pessoas vivem de afeto e de poesia? Nesse mundo você acha que eu teria este anel aqui? Você viu meu anel novo, aliás? Seu pai me deu ontem. Não é um escândalo? Depois acham que é besteira andar em carro blindado. Hum, hum. Este anel vale um apartamento, como não vou ter blindado? Eu que sei.
Mas falei demais, né? Falei tanto que esqueci de tomar meus remédios, e não vivo mais sem eles, tô até precisando aumentar a dose. Olha, era isso, meu amor. Eu amo muito você e quero que seja um homem feliz e de valores, como seu pai. Se quiser pensar um pouco nisso tudo, vai ficar uns dias no apartamento em Miami, tá bem? Acho que seu pai vai até gostar porque escutei ele dizendo que precisava mandar mais dinheiro para lá. Fala com ele sobre isso, tá? Por mim, pode ir. Mas na volta, não se esquece de me dizer o que decidiu ser quando crescer.
Créditos
Imagem principal: Barbara Krueger