Mão de Deus

Quando morava em Nova York, nosso colunista conseguiu evitar uma demissão por ter encontrado a cachorra de seu chefe. Vinte e sete anos depois, ele se pergunta se foi mais um caso de intervenção divina

por Henrique Goldman em

POR HENRIQUE GOLDMAN*

Minha vida não era fácil em Nova York, para onde me mudei com a cara e a coragem aos 19 anos. Morava numa pocilga sem calefação, num quarto que anteriormente havia sido usado como galinheiro, num prédio semi-abandonado do East Village. Trabalhava esporadicamente como garçom e tradutor e muitas vezes passava fome.

Lutei muito para conseguir uma vaga na escolinha do Ted Estabrook, um velho americano viúvo e louco, que na juventude tinha sido assistente do legendário cineasta Orson Welles e que dirigiu os primeiros fi lmes do oceanógrafo Jacques Cousteau. Aposentado e inválido, ele mantinha uma espécie de curso que formava jovens gratuitamente para trabalhar no cinema e na TV. O velho era um sádico carrasco. Tirando proveito de minha enorme vontade de saber, ele me escravizava e me torturava. Às vezes me acordava no meio da noite para me demitir só porque estava de mau humor. Mas de manhã cedo telefonava com uma voz doce para me readmitir. Era normal que ele me humilhasse cruelmente na frente da equipe e meia hora depois perguntasse com toda doçura se eu estava com fome e me levasse para almoçar.

SOCO NO ESTÔMAGO
Quebrei uma câmera e minha situação se deteriorou muito. Era óbvio que o Ted estava para me despedir de vez. Mas numa manhã, andando na Sexta Avenida, ele perdeu sua adorada cachorrinha Marcy, uma espécie rara e melancólica de poodle. Desesperado, o velho pediu que eu saísse pelas ruas do Village colando em postes e cabines telefônicas um anúncio de perda e da recompensa. Pedi a Deus que me ajudasse, pois só encontrando a cachorrinha eu poderia salvar minha pele. Associando cachorro com praça, fui à Washington Square, que ficava a poucas quadras do estúdio. Ao chegar lá, vi dois policiais e lhes mostrei a foto da Marcy. Os policiais olharam para mim surpresos, dizendo que havia poucos minutos um menino passara por ali com a cachorra, informando-os de que a estava levando para casa.

Corri como um louco para a casa do menino em Coney Island e poucas horas depois voltei triunfante para o estúdio com a Marcy no colo. Mostrando gratidão, Ted me tratou muito bem por algumas semanas. Mas dois meses depois ele me deu um soco no estômago, e eu saí de lá pra sempre, dizendo que só não revidava porque ele era um velho inválido e babaca.

Na insônia desta noite, essa memória emergiu do nada. Vontade de saber, Nova York, solidão, conquista, fome e aventura. E nisso tudo a perene mão de Deus, fazendo e desfazendo tudo sem o menor sentido.

*HENRIQUE GOLDMAN, 46, cineasta paulistano radicado em Londres. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br
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