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Manifesto Comunista

Uma das primeiras qualidades do tema desta Trip é discernir “comunidade” de “sociedade”. Ainda que pareça óbvia, é uma distinção que precisa ser lembrada e relembrada. Sobretudo de uns anos para cá, depois que a palavra “comunidade” entrou na moda vocabular e muita coisa foi “promovida” ao grau comunitário, num estalar de boca. Favelas, bairros, cidades inteiras. Coloco as aspas porque apesar da melhor intenção de quem “promove”, não acredito que o status de comunidade seja algo necessariamente desejável.

Qual é a diferença entre uma comunidade e uma sociedade? Num dos ensaios luminosos do livro Finalidades Sem Fim, Antonio Cícero lembra a divisão fundadora entre Gemeinschaft e Gesellschaft. São os dois tipos de organização social que o alemão Ferdinand Tönnies, um dos pais da sociologia moderna, descreveu no final do século 19. Na Gemeinschaft, os membros se agrupariam sob uma concordância espontânea entre pontos de vista. Sob interesses supostamente comuns. É o que chamamos comunidade. Uma igreja, uma vizinhança, um clã. Nela, uma vontade “natural” uniria os participantes. Já na Gesellschaft, a sociedade, os participantes se ligariam por uma vontade “racional”. Os interesses são contratuais, objetivos, traçados. Como exemplo de Gesellschaft, Tonnies cita as empresas, as cidades ou os Estados nacionais.

Para o sociólogo alemão, e também para o senso comum, as comunidades estão geralmente ligadas à idéia de solidariedade. De fraternidade, de amor. Já as sociedades parecem estar relegadas a um individualismo frio, calculado. Um individualismo paradoxalmente impessoal. É nesta simplificação moral que mora o perigo. Morou? Demorou. Cícero nota que a comunidade tem como arquétipo a “grande família” e que “não é à toa que a palavra comunismo lembra comunidade”. Ele tem razão. No sonho comunitário há uma espécie de nostalgia de um passado idílico, aquele de quando éramos todos irmãos felizes. Aquele, aliás, que não existe, nem nunca existiu.

Não sou contra a idéia de comunidade

Muito pelo contrário. O que me incomoda é a mistificação impensada da palavra. E seu uso fora do lugar. Repito: aqueles que “elevam” bairros ou cidades ao status ideal de comunidade estão transbordando de boas intenções. Mas querer que organizações sociais com milhares de pessoas funcionem como uma grande família incorre em pelo menos dois grandes erros. Primeiro, elas simplesmente não são famílias. Segundo, se fossem seria ainda pior. De que famílias estamos falando? Até a manicure da secretária do Freud, contemporânea de Tönnies, sabia que famílias não são exatamente fontes puras de harmonia fraternal. Mesmo a religião profética, judaico-cristã, nossa “comunidade” primordial, tem como mitos fundadores terríveis brigas de família. Primeiro entre o filho e o Pai. E depois entre dois irmãos, que culmina inclusive com um assassinato, o de Abel.

É assim em quase todas as mitologias. Família é céu e inferno. Mas, amigos da Rede Globo, eu acredito no amor social. Pior, acredito em algo ainda mais estranho: um bem querer coletivo baseado nas características da Gesellschaft, ou seja, justamente no tal individualismo impessoal e racional. É ele, e não algum desígnio divino nebuloso, que nos lembra que vale a pena amar e ser amado, tanto pessoalmente quanto socialmente. É a razão, e não uma energia cósmica não identificada, que sussurra, óbvia, para quem quiser ouvir: “vida é conexão e já que dividimos todos a experiência de existir, sem saber a que se destina, é fundamental existir da melhor maneira possível”. É a razão que calcula este “melhor possível” e percebe que, no longo prazo da existência, não há como excluir os outros da conta. É a razão, enfim, que ratifica o artigo único do código de ética existencial, aquele que diz: “tente (não) fazer aos outros aquilo que você (não) gostaria que fizessem a você mesmo”.

Uma solidariedade duradoura só se sustenta fundada em alguma racionalidade. É algo distante de qualquer arroubo religioso comunitário, seja ele profético como o islamismo ou laico como o comunismo. É distante também, no extremo oposto, da idéia batizada de Lei de Gerson, aquela do “tente levar vantagem em tudo”, tão comumente associada à esperteza, à inteligência, à racionalidade. Nada mais irracional. Qualquer cálculo dentro de um horizonte mais amplo de espaço e de tempo chega a conclusão de que tanto a esperteza gersoniana quanto a utopia sócio-religiosa não passam de uma forma sofisticada de burrice. O Brasil de hoje é a prova dos nove.

* Carlos Nader, 41, homem de mídia e pai de família, fala com você pelo e-mail carlos_nader@hotmail.com

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