Mais bati do que apanhei
Maguila já sentou a mão em meio mundo, quis ser médico, inspirou Popó e virou ícone pop
Maguila já sentou a mão em meio mundo (até na professora), quis ser médico, inspirou Popó e virou ícone pop. Ele não guarda mágoa de ninguém, de Luciano do Valle a Foreman, mas seus defensores sim. Para eles, o boxeador foi sabotado na luta contra Holyfield
“Tomei uma surra da bixiga.” Maguila mostra bom humor ao relembrar do nocaute que sofreu no segundo round da luta contra Evander Holyfield. Naquela noite de julho de 1989, foi à lona o corpanzil de 1,88 m do sergipano, mas a carreira de José Adilson Rodrigues dos Santos também acusou o golpe, e começou a definhar até o fim melancólico em 2000. Até esse combate, salvo ressalvas aqui e ali, o brasileiro vinha bem. Quando subiu no ringue do hotel cassino Caesars de Lake Tahoe, estava no auge: era campeão sul-americano e tinha batido um dos melhores lutadores da época, o americano James “Quebra-ossos” Smith. O resultado por pontos, contestações à parte, o alçou ao segundo lugar no ranking dos pesos-pesados do Conselho Mundial do Boxe, a principal entidade da categoria, um posto inédito para brasileiros. As transmissões de suas lutas pela TV Bandeirantes batiam em audiência o Fantástico e a possibilidade de um embate com Mike Tyson, embora difícil, era real. Sim, o garoto que se encantou pelo boxe vendo Muhammad Ali na TV, que passou necessidade ao lado de 19 irmãos, migrou para São Paulo pré-adolescente, dormiu em carroceria abandonada de caminhão e comeu pão com banana porque o salário de servente de pedreiro não dava pra nada tinha chegado lá. Ou quase.
Até o encontro com Holyfield, Maguila havia sofrido apenas duas derrotas, ambas em 1995 e por nocaute -- contra o argentino Daniel Falconi e diante do “martelo holandês” Andre van den Oetelaar –-, contra 33 vitórias. Doeu, mas o troco veio a galope. No ano seguinte pediu revanche e derrubou os dois gringos. Falconi levou a pior, por ter zombado de Maguila e do público do Rio de Janeiro depois da vitória na primeira luta. “Aquele argentino arrogante falava muito. Bati só em cima do olho pra ele aprender. Aí ele caiu e começou a chorar, tava cego.” A direita pesada do brasileiro descolou a retina do olho direito de Falconi no sétimo assalto, e o argentino nunca mais pôde lutar.
“Ele começou tarde [aos 19 anos], mas se adaptou rápido e tinha uma direita muito boa. Maguila foi bem importante pro boxe brasileiro”, contextualiza o ex-empresário Luciano do Valle. O locutor da Band foi o grande responsável por Maguila ter chegado aonde chegou, tanto pelo que sua empresa, a Luqui, investiu no atleta, quanto por suas narrações no Show do esporte, em que o boxeur era estrela. O ex-campeão lhe é grato: “Luciano foi muito bom pra mim. Muitos dizem que ele me roubava, que briguei com ele. Tudo mentira. Se ele ganhou dinheiro, eu também ganhei, tá tudo certo. Em primeiro lugar eu agradeço a Deus, em segundo agradeço ao Luciano e ao Kiko [o então sócio do locutor]”.
Maguila chama a atenção primeiro por estar muito gordo, apesar de dizer ter apenas 25 quilos a mais do que na época em que lutava –- quando oscilava entre 97 e 100 kg. Depois, pelo bom humor, pela paciência em atender os fãs, pela falta de paciência com as críticas e por ser bastante paparicado, seja por assessora, motorista, garçom ou pela mulher, Irani. “Quando conheci ele tinha 17 anos, hoje tenho 43. O Maguila passou mais tempo comigo do que com a mãe dele”, diverte-se a segunda esposa do homem. “O Luciano falava: ‘Você é boa pra cuidar dele porque o Maguila é um bebezão, um crianção’”.
Décadas após seu auge, o grandalhão virou ícone pop. É um tal de gente vindo conversar, pedir autógrafo, interromper almoço pra tirar foto, caminhoneiro parar ao lado do carro e puxar assunto e manicure assediar que até parece que a última luta foi transmitida domingo passado. “Quando eu andava com ele na rua em São Paulo, me sentia como se estivesse ao lado de Ali nos EUA, tamanho o assédio dos fãs”, relembra o americano Angelo Dundee, treinador de Maguila na época do fatídico embate com Holyfield. Nesses tempos o lutador vivia entre Brasil e Estados Unidos, por conta das lutas em Las Vegas e afins.
O fato de Dundee ter treinado Maguila no fim da década de 80 dá a dimensão do tamanho da aposta feita no pugilista: hoje com 88 anos, Angelo foi treinador de Muhammad Ali e mais outros 14 campeões mundiais, entre eles Sugar Ray Leonard. Contratado pelo consórcio Luqui-Bandeirantes para preparar Maguila no período anterior a cada luta, Dundee foi importante para a formação do atleta mas, por outro lado, acabou no meio de uma polêmica que persiste até hoje.
“Ele foi acertado e pronto”
“Pode ser leviandade da minha parte depois de tantos anos dizer isso, mas acho que o Dundee entregou aquela luta”, afirma Luciano do Valle, na lata. “Ele tinha falado que não dava pra entrar no raio de ação do Holyfield, já que ele era um dos pesos-pesados mais completos do mundo e a pequena distância seria mortal. No primeiro assalto o Maguila ganhou por pontos, e então o que fez o Dundee? Disse pra encurtar a distância e acabar com a luta. Aí ele entregou o Maguila de bandeja... Essa luta estava combinada.”
Newton Campos, presidente da Federação Paulista de Boxe e comentarista do esporte há mais de 50 anos, joga gasolina na fogueira: “Eu tava lá, olhei as papeletas dos jurados e vi que os três deram que Maguila ganhou o primeiro round. Mas aí o treinador pediu para ele mudar a forma de lutar e ele acabou nocauteado daquela forma dramática”. Maguila não dá tantos detalhes sobre aquela noite em que terminou estatelado no chão de forma preocupante: “Ele [Dundee] mandou eu brigar, ir pra cima, aí não deu certo. E o Holyfield era forte demais. Aliás, forte daquele jeito, só com esteroide”.
Dundee, que se comunicava com o brasileiro por meio de uma mistura de espanhol e italiano, se indignou com a insinuação. “Holyfield é um lutador extraordinário, e uma derrota para alguém desse porte não é uma desgraça... E você vai ficar louco se pensar dessa forma [que houve má intenção]. Ele simplesmente foi acertado e pronto.”
“Dundee [então treinador do brasileiro] entregou Maguila de bandeja pro Holyfield”, diz Luciano do Valle
A derrota acabou desencadeando uma sequência de fatores que encolheu a carreira de Maguila. Luciano e Kiko queriam que o lutador desse um tempo. “Os exames indicaram que não havia ficado sequela, mas que tinha uma possibilidade real de ficar, de piorar muito, se ele continuasse enfrentando pugilistas fortes. O médico até deu o exemplo do Ali. Queríamos utilizá-lo como professor de boxe e comentarista das lutas do Tyson.” Adílson não topou e seguiu em frente por conta própria.
Um ano após o episódio e rompido com a Luqui, Maguila enfrentou George Foreman. “Não deveriam ter posto ele na frente do Foreman tão rápido. Quando você perde por nocaute daquela maneira tem que ir aos poucos, pra ganhar confiança”, analisa Campos. Não deu outra: Maguila movimentou-se pouco, não ofereceu perigo e caiu no segundo assalto. “Já não era mais o Maguila”, vaticinou Luciano do Valle.
A declaração, dura, faz sentido. A partir daí o campeão ficou 13 meses parado antes de recomeçar, aos poucos, contra adversários bem menos expressivos. “Esse período depois do contrato com a Luqui foi de uma dificuldade muito grande para nós”, relembra a esposa, Irani. Em 1995 o brasileiro conseguiu sua última glória: o cinturão de campeão mundial pela pouco expressiva WBF, uma das muitas entidades que representam o boxe, derrotando o inglês Johnny Nelson, em Osasco. Pendurou as luvas de vez algumas lutas depois, em 2000, após derrota por nocaute para o brasileiro Daniel Frank.
Primeiro brasileiro a levar o boxe para o horário nobre após Éder Jofre, Maguila serviu de exemplo. “Me identifico muito com ele não só pelo esporte, mas também pelo fato de ser um nordestino como eu, que carregou muito saco de cimento nas costas até ser campeão e lutar em Las Vegas, onde muita gente boa não lutou”, diz o baiano Acelino de Freitas, o Popó. “Via as lutas dele na TV e pensava: um dia eu quero um cinturão assim.” Popó, que também deixou os ringues e acaba de entrar em uma faculdade de direito na Bahia, alcançou o sonho: foi campeão mundial em duas categorias, superpenas e leves.
“Tem gente que quer viver a vida inteira na mídia, ganhando dinheiro, fazendo essas coisas que rico faz. Não é por aí, a vida é cheia de altos e baixos”, filosofa Maguila.
Deixou o cara em coma
“A única coisa que me incomoda é falta de respeito. Se me desrespeitam eu sento a mão na orelha mesmo.” A frase é de uma franqueza ímpar. Maguila realmente aparenta ser da paz. Chegou a ser classificado por nossa produtora como “fofo”. Mas pontua as conversas contando, não raro às gargalhadas, das vezes em que acabou “sendo obrigado” a partir pra ignorância.
“Uma vez tava em Osasco e um ladrão veio pra cima de mim, queria a chave do carro. Eu disse: ‘Tá aqui no meu bolso, vem pegar’. Ele veio com um pedaço de pau e eu dei uma direita tão forte que o cara ficou três semanas em coma. Sério. Na hora quem tava ali até falou pra eu fugir porque achavam que ele tinha morrido. A porrada arregaçou o cara todinho. Tá vendo aqui? [Mostra uma cicatriz profunda na mão direita.] Foi o osso do queixo dele. Nunca vi isso na vida, voou pedaço de osso com dente.”
Teve também a briga no meio de um desfile antigo de escola de samba. “Sem mentira nenhuma, se eu dei dez socos, foram dez nocautes.” Teve o infeliz que o provocou na padaria ao lado de casa e foi esmurrado, levou 18 pontos na boca. “Teve até processo, mas o juiz era meu fã, deu até uma dura no cara: ‘Você devia ter orgulho de ser amigo do Maguila!’. E ainda obrigou ele a apertar minha mão.” Teve quebra-pau generalizado no banheiro do forró. “Tô lá mijando, entra um bêbado e começa a me encher o saco, falar da luta do Holyfield. Acertei ele e começou uma baita confusão no banheiro, muita gente brigando. Ia esquivando e batendo, parecia filme.” Por fim, nos últimos dias do ano passado, teve desavença com seguranças do Parque Ecológico do Tietê. “Começamos a discutir, e quando eu vi eram quatro seguranças e um tava com um facão. Dei um jab na cara dele, que caiu e ficou quieto.” Enfim, a lógica é simples: “Respeite pra ser respeitado, senão o couro come mesmo”.
“Se me desrespeitarem eu sento a mão na orelha mesmo”
Irmãos assassinados
Além de servente de pedreiro e boxeador, Maguila já teve uma pequena loja de entregas de laticínios e pertences de feijoada, posto de gasolina, foi segurança de motel, emprestou o nome para uma grife de bonés, gravou comerciais, encarou um smoking como comentarista econômico do extinto Aqui agora (SBT) e fez parte do elenco do Show do Tom (Record). Agora, tenta a sorte como sambista. Foi contratado pela empresa de Raul Gil e, com a banda Peso Pesado, lançou o CD Vida de campeão. Interpreta a faixa título, inédita, e sucessos que escolheu, como “Deixa a vida me levar”, “Vai vadiar” e “Minha sogra parece sapatão”. Seu principal ídolo na música é Bezerra da Silva, que inspirou seu novo look profissional, sem o qual a gravadora não permite que seja fotografado.
“O pessoal diz que tá gostando, não sei se por medo ou por respeito”, diverte-se. “A Irani é certeza que prefere o velhinho aqui no samba.” Além de satisfeita com a atual tranquilidade do marido –- “quando ele era magrinho era fogo, as mulheres caíam em cima”--, Irani hoje cuida da ONG Amanhã Melhor, fundada pelo casal após o abandono dos ringues. Com sede na rodovia Raposo Tavares, oferece para crianças carentes aulas de balé, vôlei e boxe, entre outras.
É o tipo de iniciativa, acredita, que pode garantir às crianças uma realidade melhor do que a que levou ele e todos os seus 19 irmãos a migrar para Rio ou São Paulo em busca de uma vida melhor. Treze já se foram, quatro deles assassinados, em circunstâncias diferentes. O primeiro foi no começo da década de 80, e o último, em 2006. “Trabalhava como segurança no Morumbi. Invadiram a casa pra assaltar e mataram ele com três tiros, uma covardia.” Diz não ter medo de morrer e acredita, inclusive, que irá cedo, como o pai, que se foi com 60 anos, de ataque do coração. “Cara grande assim como eu e meu pai acaba morrendo cedo.”
Aos 50 anos de idade e avô de oito netos –- o mais velho com 13 anos --, Maguila se mostra agradecido pela vida que tem. Recita orgulhoso o currículo --“85 lutas e 77 vitórias, 61 por nocaute”. Semianalfabeto, um de seus poucos lamentos é não ter estudado mais –- “queria muito ser médico, eu levava jeito, sabia abrir animal grande e depois costurar”. Largou a escola aos 12 anos, após “dar uma na orelha” de uma professora que, segundo conta, não queria ensinar e ainda lhe bateu com uma régua. Sua casa própria, na Vila Ré, zona leste paulistana, é toda equipada, inclusive com um George Foreman Grill –- “aquele negócio que assa? Tenho sim”. O ex-campeão tem ainda uma chácara em Itaquaquecetuba e dois apartamentos na praia, no Guarujá e na Praia Grande, aonde vai apenas para agradar mulher e filhos. “Não gosto muito de praia, eu fico muito escuro. Sou da raça negra com muita honra, mas negão é teu passado. Eu sou marrom provocante.”
Prefere ficar em casa, assistindo TV, curtindo a família e destilando sua sabedoria peculiar. “Boxe é só chegar lá, meter o braço e pronto. É como na vida, não tem meio-termo, se não bate, apanha. Apanhei um bocado, mas bati mais do que apanhei.”