Lembranças Boas
Se tiver que escolher um momento único na sua vida para reviver, qual escolheria?
QUESTÃO
Se tiver que escolher um momento único em sua vida para viver nele o resto de sua vida, qual escolheria?
Dá para responder? No meu caso, foram tantos que teria que viver muitas vidas. Não há como dizer que um foi melhor que o outro. Mas dá para afirmar com certeza: todos foram únicos. Comecei a lembrar e fiquei surpreso ao perceber que foram mais alívio de opressões a que estive submetido que outra coisa. Vou tentar resumir alguns.
a) Quando, após ano em regime de castigo, fui liberado da cela-forte. A cela comum sabia a um paraíso para mim. A alegria foi tamanha que chorei como criança.
b) Quando assinei o mandato de Prisão Preventiva que o Juiz decretara. Era o fim de mais de 100 dias sob tortura intensa e insustentável. Estava a mercê dos mais cruéis torturadores que já passaram pelo Departamento Estadual de Investigações Criminais. Meus parceiros assinaram também, mas já haviam iniciado o processo de enlouquecimento. Um deles se suicidaria em seguida. Os outros dois resistiriam, mas saíram da prisão abestalhados. Um virou mendigo e nunca mais tive notícias. O outro é um velho bobo que some às vezes e dá trabalho para a família. Eu sabia que estava assinando um mandato para ficar preso o resto de minha vida. Dalí para a frente teria que vencer um leão por dia, mas o alívio e a paz que senti é uma das lembranças mais doces que guardo em meu coração.
c) Quando consegui chegar até a rampa de acesso ao prédio novo (hoje já velho) da Pontifícia Universidade Católica e abraçar minha mãe que ali me esperava. Foram três anos de batalha com livros e apostilas, em que sozinho havia vencido. Era o primeiro preso do Estado a prestar um vestibular, e o primeiro colocado em toda a Universidade. A vitória era completa. Minha mãe chorava em meu peito. Era a primeira vez na vida que podia dar notícias boas do único filho que tinha. A vitória era nossa. Jamais me abandonara e me seguira para todos os infernos em que fui enfiado. A satisfação que causava a minha mãe era uma realização maior até que o próprio ingresso na Universidade. Essa é uma grande lembrança que construí com meu empenho e capacidade.
d) Quando, ao receber meu filho Renato com apenas 40 dias, na entrada do pavilhão 8 da extinta Casa de Detenção de São Paulo. Claro, super emocionante, mas não foi só isso que tornou o momento único ao meu coração. Ao recebê-lo, cheio de ternura, aconcheguei aquele pacotinho azul com aquela minúscula carinha vermelha. Lembro ainda; era quente como febre. Acho que pela minha inabilidade, de repente o nenê escorregou de meu peito por cima. Estava caindo de ponta cabeça, morreria na queda, tive certeza disso. Alcancei-o, não dá para explicar como, porque depois pareceu impossível, a poucos centímetros do chão. Só deu para entregar o bebê à mãe, encostar na muralha e ir descendo, em choque. Acho que tive um pequeno ataque no coração, fiquei mole como uma trouxa de roupa molhada, tamanha intensidade emocional vivida.
e) Quando, ao cabo de 31 anos e 10 meses de prisão cheguei à casa de minha namorada, no Rio de Janeiro, levado pelo pessoal da Revista Trip. O encontro foi genialmente registrado pelo fotógrafo João Wainer; ela vindo da porta da casa dela e eu do carro a revista. O abraço foi de fundir. Ficamos 25 anos separados e há 3 anos voltáramos. Imaginávamos que agora seria para sempre. Aquela esperança que irradiava dos olhos escuros e brilhantes da namorada tornou único aquele momento. É como fosse um veludo que aliso sempre que quero me sentir bem.
f) Quando, após três anos de lutas com minha editora escrevendo e reescrevendo o livro “Às Cegas”, fizemos seu lançamento na FENAC da Av. Paulista. Pude levar meus dois filhos e ler em seus olhos o orgulho que sentiam do pai deles. Ainda há algum tempo atrás, Jorlan, meu menino mais novo, disse-me que aquele foi um dos momentos mais felizes de sua vida. Essas palavras do menino, sinceras e espontâneas, engrandeceram aquele momento. Ele tem razão, de fato foi lindo, inesquecível.
g) Sai da prisão convencido de que o que há por lá é muito mais ignorância que levava à estupidez do que maldade de fato. Sabia que devia lutar para voltar, mas agora em nome de grandes projetos educacionais e culturais. Quando, após quase 4 anos de luta para realizar esse compromisso, consegui montar a minha Oficina de Leitura e Escrita na Penitenciária Feminina de Sant’ana, foi um momento único, grandioso. Minhas alunas eram mulheres aprisionadas, e possuíam a honra e a responsabilidade opcional de serem professoras de suas companheiras. Era um concurso de redação a nível nacional do Instituto Ecofuturo e eu estava ali para passar a elas como funcionava o concurso. Elas repassariam a suas alunas. Minha Oficina era recheada de material que eu havia colhido em toda minha vida de estudos e reflexões sobre leitura e escrita. Mas, minha mensagem era simples: Olha eu aqui, sou igual a vocês, matei, roubei e fiz o diabo, mas dei a volta por cima e cá estou para mostrar que é possível; vamos nessa?
h) Cheguei na Secretaria dos Assuntos Prisionais e me apresentei à funcionária que fazia segurança da portaria. Havia sido convidado para o lançamento do Guia Dicas. Pediu-me a identidade e telefonou. Demorou, discutia sei lá com quem. Aproximei e percebi que era sobre mim. Alguém obstava meu ingresso. Havia uma portaria que não permitia a entrada de egressos naquele lugar, informou a funcionária. De imediato pequei meu documento de sua mão. Eu não precisava entrar onde não era bem vindo. Virei as costas e fui embora, elegantemente. Próximo ao metrô, o celular toca. Era o Jorge. Estava dentro da Secretaria e pedia que eu voltasse; a cerimônia não teria sentido se eu não estivesse presente. Fora cometido um engano, o próprio Secretário, Dr. Antonio, queria se desculpar. Voltei. Da moça da segurança, que me esperava no portão, até chegar na mesa cerimonial, recebi trocentos pedidos de desculpas. O próprio Dr. Antonio Ferreira, hoje Secretário da Segurança, desculpou-se pela falha, deu-me seu cartão pessoal e disse que podia procurá-lo sempre que precisasse. Então, nos sentamos frente ao público. Conhecia todo mundo. Era o pessoal da FUNAP (gente que conheci quando era professor-preso), da própria Secretaria, parceiros que lutam pelo preso. Estávamos lançando o Guia Dicas, idéia minha para orientar o preso quando este saísse da prisão quanto a documentação, trabalho, processos, educação, saúde, até os albergues de São Paulo foram listados. Momento único, falei para amigos e cheguei até a chorar, foi uma realização enorme. Já foram publicados mais de 200 mil exemplares e vem sendo distribuído a todos os presos do Estado que estão para sair em liberdade.
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Acho que ainda existem outros momentos tão ou quão importantes. Alguns pessoais demais para serem ditos, mas acho que esses são aqueles que mais me acodem à lembrança espontaneamente.
Mas e você? Dá para enumerar muitos, né? Faça-o, não precisa ser por escrito, é muito legal estar diante deles novamente. Experimente.
Luiz Mendes
29/10/2009.
Um lembrete: O lançamento da nova edição de meu livros “Memórias de um Sobrevivente” foi adiado do dia 9 como estava combinado, para o dia 24 do mês que vem na livraria da Companhia das Letras no Conjunto Nacional. O adiamento deve-se a problemas que aconteceram com relação à edição da capa, informou a editora.