Lembranças Boas

Se tiver que escolher um momento único na sua vida para reviver, qual escolheria?

por Luiz Alberto Mendes em

QUESTÃO

Se tiver que escolher um momento único em sua vida para viver nele o resto de sua vida, qual escolheria?

Dá para responder? No meu caso, foram tantos que teria que viver muitas vidas. Não há como dizer que um foi melhor que o outro. Mas dá para afirmar com certeza: todos foram únicos. Comecei a lembrar e fiquei surpreso ao perceber que foram mais alívio de opressões a que estive submetido que outra coisa. Vou tentar resumir alguns.

a)     Quando, após ano em regime de castigo, fui liberado da cela-forte. A cela comum sabia a um paraíso para mim. A alegria foi tamanha que chorei como criança.

b)     Quando assinei o mandato de Prisão Preventiva que o Juiz decretara. Era o fim de mais de 100 dias sob tortura intensa e insustentável. Estava a mercê dos mais cruéis torturadores que já passaram pelo Departamento Estadual de Investigações Criminais. Meus parceiros assinaram também, mas já haviam iniciado o processo de enlouquecimento. Um deles se suicidaria em seguida. Os outros dois resistiriam, mas saíram da prisão abestalhados. Um virou mendigo e nunca mais tive notícias. O outro é um velho bobo que some às vezes e dá trabalho para a família. Eu sabia que estava assinando um mandato para ficar preso o resto de minha vida. Dalí para a frente teria que vencer um leão por dia, mas o alívio e a paz que senti é uma das lembranças mais doces que guardo em meu coração.

c)      Quando consegui chegar até a rampa de acesso ao prédio novo (hoje já velho) da Pontifícia Universidade Católica e abraçar minha mãe que ali me esperava. Foram três anos de batalha com livros e apostilas, em que sozinho havia vencido. Era o primeiro preso do Estado a prestar um vestibular, e o primeiro colocado em toda a Universidade. A vitória era completa. Minha mãe chorava em meu peito. Era a primeira vez na vida que podia dar notícias boas do único filho que tinha. A vitória era nossa. Jamais me abandonara e me seguira para todos os infernos em que fui enfiado. A satisfação que causava a minha mãe era uma realização maior até que o próprio ingresso na Universidade. Essa é uma grande lembrança que construí com meu empenho e capacidade.

d)     Quando, ao receber meu filho Renato com apenas 40 dias, na entrada do pavilhão 8 da extinta Casa de Detenção de São Paulo. Claro, super emocionante, mas não foi só isso que tornou o momento único ao meu coração. Ao recebê-lo, cheio de ternura, aconcheguei aquele pacotinho azul com aquela minúscula carinha vermelha. Lembro ainda; era quente como febre. Acho que pela minha inabilidade, de repente o nenê escorregou de meu peito por cima. Estava caindo de ponta cabeça, morreria na queda, tive certeza disso. Alcancei-o, não dá para explicar como, porque depois pareceu impossível, a poucos centímetros do chão. Só deu para entregar o bebê à mãe, encostar na muralha e ir descendo, em choque. Acho que tive um pequeno ataque no coração, fiquei mole como uma trouxa de roupa molhada, tamanha intensidade emocional vivida.

e)     Quando, ao cabo de 31 anos e 10 meses de prisão cheguei à casa de minha namorada, no Rio de Janeiro, levado pelo pessoal da Revista Trip. O encontro foi genialmente registrado pelo fotógrafo João Wainer; ela vindo da porta da casa dela e eu do carro a revista. O abraço foi de fundir. Ficamos 25 anos separados e há 3 anos voltáramos. Imaginávamos que agora seria para sempre. Aquela esperança que irradiava dos olhos escuros e brilhantes da namorada tornou único aquele momento. É como fosse um veludo que aliso sempre que quero me sentir bem.

f)        Quando, após três anos de lutas com minha editora escrevendo e reescrevendo o livro “Às Cegas”, fizemos seu lançamento na FENAC da Av. Paulista. Pude levar meus dois filhos e ler em seus olhos o orgulho que sentiam do pai deles. Ainda há algum tempo atrás, Jorlan, meu menino mais novo, disse-me que aquele foi um dos momentos mais felizes de sua vida. Essas palavras do menino, sinceras e espontâneas, engrandeceram aquele momento. Ele tem razão, de fato foi lindo, inesquecível.

g)     Sai da prisão convencido de que o que há por lá é muito mais ignorância que levava à estupidez do que maldade de fato. Sabia que devia lutar para voltar, mas agora em nome de grandes projetos educacionais e culturais. Quando, após quase 4 anos de luta para realizar esse compromisso, consegui montar a minha Oficina de Leitura e Escrita na Penitenciária Feminina de Sant’ana, foi um momento único, grandioso. Minhas alunas eram mulheres aprisionadas, e possuíam a honra e a responsabilidade opcional de serem professoras de suas companheiras. Era um concurso de redação a nível nacional do Instituto Ecofuturo e eu estava ali para passar a elas como funcionava o concurso. Elas repassariam a suas alunas. Minha Oficina era recheada de material que eu havia colhido em toda minha vida de estudos e reflexões sobre leitura e escrita. Mas, minha mensagem era simples: Olha eu aqui, sou igual a vocês, matei, roubei e fiz o diabo, mas dei a volta por cima e cá estou para mostrar que é possível; vamos nessa?

h)            Cheguei na Secretaria dos Assuntos Prisionais e me apresentei à funcionária que fazia segurança da portaria. Havia sido convidado para o lançamento do Guia Dicas. Pediu-me a identidade e telefonou. Demorou, discutia sei lá com quem. Aproximei e percebi que era sobre mim. Alguém obstava meu ingresso. Havia uma portaria que não permitia a entrada de egressos naquele lugar, informou a funcionária. De imediato pequei meu documento de sua mão. Eu não precisava entrar onde não era bem vindo. Virei as costas e fui embora, elegantemente. Próximo ao metrô, o celular toca. Era o Jorge. Estava dentro da Secretaria e pedia que eu voltasse; a cerimônia não teria sentido se eu não estivesse presente. Fora cometido um engano, o próprio Secretário, Dr. Antonio, queria se desculpar. Voltei. Da moça da segurança, que me esperava no portão, até chegar na mesa cerimonial, recebi trocentos pedidos de desculpas. O próprio Dr. Antonio Ferreira, hoje Secretário da Segurança, desculpou-se pela falha, deu-me seu cartão pessoal e disse que podia procurá-lo sempre que precisasse. Então, nos sentamos frente ao público. Conhecia todo mundo. Era o pessoal da FUNAP (gente que conheci quando era professor-preso), da própria Secretaria, parceiros que lutam pelo preso. Estávamos lançando o Guia Dicas, idéia minha para orientar o preso quando este saísse da prisão quanto a documentação, trabalho, processos, educação, saúde, até os albergues de São Paulo foram listados. Momento único, falei para amigos e cheguei até a chorar, foi uma realização enorme. Já foram publicados mais de 200 mil exemplares e vem sendo distribuído a todos os presos do Estado que estão para sair em liberdade.

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Acho que ainda existem outros momentos tão ou quão importantes. Alguns pessoais demais para serem ditos, mas acho que esses são aqueles que mais me acodem à lembrança espontaneamente.

Mas e você? Dá para enumerar muitos, né? Faça-o, não precisa ser por escrito, é muito legal estar diante deles novamente. Experimente.

 

Luiz Mendes

29/10/2009.

Um lembrete: O lançamento da nova edição de meu livros “Memórias de um Sobrevivente” foi adiado do dia 9 como estava combinado, para o dia 24 do mês que vem na livraria da Companhia das Letras no Conjunto Nacional. O adiamento deve-se a problemas que aconteceram com relação à edição da capa, informou a editora.

        

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