Jeff Hakman riu por último
Do posto de mais jovem campeão mundial de surfe ao fundo do poço do consumo de heroína
Do posto de mais jovem campeão mundial de surfe ao fundo do poço do consumo de heroína, o americano Jeff Hakman viveu de tudo um muito. Trip conversou com o homem em uma praia paulista, entre risadas, memórias e garfadas de arroz com feijão
“Call me Jeff”, ele disse de cara. Encontrei Jeff Hakman, o “ex-junkie legend” – quem o definiu assim certa vez foi o cineasta Marcos Prado – junto com Bob McKnight (hoje presidente do conselho da Quiksilver, depois de 40 anos como CEO) na praia, apresentado por um amigo em comum, Alfio Lagnado. Com poucos traços que denunciem seus 64 anos visceralmente vividos, Jeff, longe da terceira idade, está mais para quem terceirizou a idade: parece que pelo menos dez anos da sua existência foram entregues para algum incauto menos energizado carregar e metabolizar, enquanto ele simplesmente sorri.
Com entusiasmo, ele começa a contar histórias vivas, cheias de tsunamis pessoais. Uma estranha e poderosa energia interior sobressai a cada palavra. De que outra maneira alguém poderia ter descido ao inferno da heroína por diversas vezes, beijado o Diabo na boca, emergido para contar qual o sabor dos lábios do coisa-ruim e ainda, sexagenário e cheio de energia, querer vir morar no Brasil e recomeçar a vida mais uma vez? Fucking amazing.
Para Jeff o surf começou em Palos Verdes, Califórnia. Aos 8 anos, levou um caldo traumático que o manteve longe da água por um ano. O pai o incentivou a insistir. Na primeira onda boa, a maravilha venceu o medo. Dois anos depois convenceu os pais a se mudarem para o Havaí.
“Embora existam muitas pessoas surfando no planeta, não há muitos surfistas genuínos, na sua forma mais pura. Esses indivíduos são únicos e todos têm uma paixão em comum, num nível muito alto”
Aos 18, na fila de alistamento para a Guerra do Vietnã, protagonizou um desempenho convincente como homossexual que lhe valeu a dispensa do Exército. Em 1969, aos 21, já considerado o melhor surfista de competição do mundo, revelou-se um dos piores contrabandistas do planeta – e também um dos mais sortudos. Foi pego por federais com alguns quilos de maconha que ele e o amigo Buddy Boy Kahoe (que faleceria anos depois de overdose de heroína) enviaram para si próprios, em caixas de som revestidas de papelão, da Tailândia para Haleiwa, na Costa Norte de Oahu, no Havaí. Mas se safou devido a duas falhas técnicas do DEA (o departamento de combate às drogas dos EUA ): 1) Interceptar o correio é ilegal e qualquer prova que emane daí é inválida. 2) Os policiais seguraram as evidências tempo demais. Essas ações, pela lei americana, são inconstitucionais. O juiz desqualificou as acusações. Por pouco, em vez de contemplar as plantações de cana-de-açúcar que emolduram a paisagem do arquipélago, Jeff não apreciou outro tipo de cana, bem mais amarga.
O mais baixo da classe
Andando pela praia até minha casa, no litoral norte paulista (eu queria lhe dar meu livro Almaquática, feito com o fotógrafo Klaus Mitteldorf e o designer David Carson, que Jeff conhecia de outros carnavais), ele falou do fascínio com o Brasil: “Vivo na França há 30 anos. Os invernos são muito longos. O Brasil é uma ótima alternativa. Você ainda encontra praias vazias, vida selvagem, ótima comida, bom tempo e um estilo de vida vibrante que não é muito caro”. Sobre o surf, acredita que, “embora existam muitas pessoas surfando no planeta, não há muitos surfistas genuínos, na sua forma mais pura. Esses indivíduos, eu são únicos, e todos têm uma paixão em comum num nível muito alto”.
Eu ouvia tudo isso do cara que foi, aos 17 anos, o mais jovem campeão mundial de todos os tempos. Embora não houvesse na época o Campeonato Mundial no formato que conhecemos hoje, não é exagero dizer que Jeff dominou o esporte na maior parte da década de 70, vencendo por duas vezes o prestigiado Campeonato Eddie Aikau Invitational, por três vezes o Hang Ten Invitational e levando o caneco do primeiro Pipeline Masters e do Guston Pro na África do Sul. Ainda aos 17, foi eleito o melhor surfista de ondas grandes do mundo. Casca-grossíssima. Que, curiosamente, foi o garoto mais baixo da classe nos tempos de escola. Teria sido essa característica um motivador extra? Ele admite que o fato adicionou vontade a mais para superar obstáculos e mostrar que podia fazer e acontecer. O surf agradece Jeff não ser 10 centímetros mais alto.
“Vivi na França por 30 anos, os invernos são muito longos. O Brasil é uma ótima alternativa. Você ainda encontra praias vazias, vida selvagem, ótima comida, bom tempo e um estilo de vida vibrante e não muito caro”
Falamos muito de suas performances nas décadas de 1970, em especial de uma na praia de Puntas Rocas, no Peru, quando Jeff ostentava a prancha gun branca e se destacava pelos fortes e precisos botton-turns, projetando linhas longas, traçadas com fluidez e o famoso power difícil de definir, com o centro de gravidade baixo, que os juízes adoravam. Nomes de surfistas peruanos da época foram pipocando na conversa – Felipe Pomar, Gordo Barreda, Chino Malpartida, Fernán Ortíz de Zeballos. A noção de hospitalidade de alguns peruanos (e brasileiros) com os surfistas estrangeiros passava pelo fornecimento de presentes psicodélicos – cocaína e maconha. Eram tempos de excesso de experimentação com pouca informação. O costume cimentou amizades e diluiu vidas. Jeff foi fundo.
Posição fetal
Em 1973, acompanhado da namorada Sandy Raymond e do compadre Gerry Lopez, desbravou Bali, suas ondas e seus cogumelos. Deslumbrados, surfaram Uluwatu e Kuta Reef non-stop. Foi nessa época que a heroína, que seria sua companheira por anos, foi apresentada por Sandy. Um ano depois, houve a final antológica do Duke Kahanamoku Invitational em Waimea Bay, contra Reno Abelira, na qual Jeff ficou em segundo por margem mínima, no maior mar surfado em um campeonato até então, com séries de até 30 pés (10 metros). Muitos surfistas se recusaram a entrar na água. Ele entrou ainda na madrugada, para treinar e se adaptar às condições extremas antes da competição.
Em 1975, vendo o sucesso de marcas como a Lightning Bolt, levadas pela aura de Gerry Lopez, Jeff e Bob McKnight resolveram entrar na indústria de surfwear. Jeff sabia tudo de surf; Bob, administrador de empresas, sabia tudo de negócios: a parceria de sonho. Jeff tinha gostado de uma bermuda emprestada pelo amigo australiano Mark Warren. O nome da marca? Quiksilver. Decidiu ir atrás da licença para levar para os EUA. Em Bell’s Beach, jantou com Alan Green, um dos donos da marca, que não estava convencido da proposta. “O que preciso fazer para ter a licença? Querem que eu coma essa toalha de papel?”, provocou Jeff, que em seguida pegou a toalha, mastigou e engoliu. Ganhou.
No curto período na Austrália, sob o efeito avassalador da heroína, o campeão conseguiu fazer o maior negócio da sua vida além de ser o primeiro estrangeiro a vencer o Bell’s Beach Contest, sem que ninguém percebesse o que se passava dentro dele. Na volta para o Havaí, Jeff passou as 12 horas de voo encolhido, tremendo, em posição fetal. A droga cobrava seu tributo.
Sua resistência insana veio à tona novamente em 1981, quando ele não conseguiu sair por cima da junção de uma onda de 10 pés que ia se fechando em Backyards, Oahu. Jeff foi jogado de cabeça no recife de coral. Conseguiu chegar à praia, onde o amigo e famoso fabricante de pranchas de surf Tom Parrish tentou não vomitar ao ver o ferimento que abriu uma avenida irregular em sua testa. Tom respirou fundo e o levou ao hospital. Lá chegando, os médicos que costuraram os mais de 50 pontos no escalpo dilacerado não podiam acreditar que ele não havia desmaiado com o impacto. Permanecer consciente foi o que salvou a sua vida.
Atrás do balcão
A bela biografia de Jeff, Mr. Sunset, escrita por Phil Jarratt e lançada em 1997, narra com precisão e crueza como ele ganhou grana levando a Quiksilver da Austrália para os EUA – e como detonou tudo com as drogas, sendo “deletado” na companhia. Ele se recuperou anos depois, ao introduzir a marca na Europa, enfatizando mais o lado ‘snowboard’ do business. Outra vez milionário, cedeu novamente ao sussurrar da serpente: vendeu ações da empresa, que foram parar direto no seu braço, a preço de abacaxi.
Uma metáfora suave (e terrível) descreve a recaída na heroína como a tap on the shoulder, “um tapinha nas costas”. Distraiu, olhou para trás, dançou. Quando a Quiksilver na Europa estava começando a decolar, Jeff desviou dinheiro da companhia e dos amigos que haviam lhe dado outra chance para sustentar a nova escorregada. Sentiu-se culpado, mas a lógica do vício não considera ética ou amizade. Para a heroína não existe mundo lá fora.
“Eu tinha 13 anos e meu pai, um Waterman experiente, falava: ‘Vamos lá! se você estiver se afogando eu te tiro’. só que quando entrava a série [em Waimea], ele era o primeiro a ser varrido!”
Quando, em 1982, sua mulher na época, Cherie Radcliffe, o acordou no meio de uma noite para irem ao hospital – o primeiro filho do casal ia nascer – Jeff a levou, mas saiu em seguida para mais uma dose. Na volta, viu o nascimento de Ryan através da cortina difusa de loucura da heroína. Tempos depois, foi levado por amigos para um programa de reabilitação numa das melhores clínicas do mundo, em Londres. Livrou-se da droga e reconhece que o lugar ensinou muito, inclusive a dizer não.
Limpo, mas falido, Jeff foi morar em Gold Coast, na Austrália, a poucos passos do pico de Burleigh Heads, com Cherie e Ryan (um ano depois viria a filha, Lea). Para pôr comida na mesa, engoliu o orgulho e pediu emprego na surfshop do amigo Paul Nielsen. Após longos segundos de silêncio e constrangimento ao telefone, Nielsen aceitou. Certo dia, Nat Young, famoso surfista australiano que havia competido com Jeff, entrou na loja e não acreditou quando o viu atrás do balcão. Outros amigos que passavam por lá, ao verem o lendário Mr. Sunset vendendo parafina, também não sabiam o que dizer. Mas ele foi se reerguendo. Surfava quase todo dia, deu aulas de surf para crianças – e se lembra desse tempo como um dos mais felizes da sua vida.
Resiliência
Sentado na minha varanda, olhando ao mar, ele diz num tom mais introspectivo: “Cometi muitos erros, Sidão”. “Ei, Jeff, quem não cometeu? Isso é passado, o negócio é focar no hoje.” Ele sorri mais uma vez. Quando pergunto se ele sente ter o poder de reconstruir a sua vida no momento que quiser, a resposta é: “Eu costumava pensar isso, hoje é muito mais difícil”.
Fico imaginando se a mesma força interior que o fez remar com o pai para o outside de Waimea, ainda menino, lhe deu a luz para sair fora da pegada da heroína, substância que o Rolling Stone Keith Richards definiu como “a mais sedutora das drogas”. Jeff Hakman confirma que a coisa mais difícil com a qual teve que lidar na vida, a número um, de longe, é mesmo o vício. Nada que o tenha transformado em uma pessoa amarga ou sem humor. Perguntado sobre uma cena engraçada na sua vida, ele lembra de um episódio recente, quando dirigiu 30 minutos para ir surfar em Byron Bay, na Austrália, com o filho Ryan: saiu do carro, colocou o calção, pegou a parafina, trancou o carro... e então viu que tinha esquecido a prancha.
Também é rindo que ele conta, entre garfadas de arroz integral com feijão preto e salada de couve-flor com brócolis, que devorou com apetite de náufrago (e repetiu), como foi ter 13 anos e entrar em Waimea. “Eu estava cagando de medo”, ele diz. “Meu pai, um waterman experiente, falava: ‘Vamos lá! Se você estiver se afogando eu te tiro’, só que, quando entrava a série, ele era o primeiro a ser varrido! E eu ficava cagando de medo ainda mais, boiando sozinho.”
O périplo de outro campeão mundial, Andy Irons, na onda das drogas, teve resultado oposto. Jeff foi fundo, mas veio à tona, duas, três, dez vezes. Irons subiu precocemente para o andar de cima. Não sei até que ponto ele está consciente da própria resiliência; o fato é que está reconstruído. Hoje é consultor de marketing da Quiksilver, tem amigos por todo o mundo e uma namorada brasileira, com quem se casa em breve. O que fica da vida de montanha-russa? “Os poucos instantes em que estou totalmente no presente, apenas sendo, apreciando o momento”.
Mais do que ganhar campeonatos, fazer amigos, rodar o mundo, ter empresas de sucesso, comer arroz e feijão com histórias, experimentar de tudo um muito, regenerar-se parece ser a grande especialidade e o talento diferenciado de Jeff Hakman. Saber lidar de maneira instintiva com as profundezas abissais do mar e da alma, e com os altos cumes da experiência humana.
Jeff, uma onda de cada vez, amigo. Aloha.
*Sidney Luiz Tenucci Jr., o Sidão, foi criador da OP Ocean Pacific no Brasil. Jornalista formado pela USP, é colunista do site Waves e autor dos livros Almaquática (ed. Terra Virgem), O surfista peregrino e Poentes de amor (ed. Decor). Lança em breve Os sete chakras geográficos, pela ed. NeoAnima.