Toda manhã, um dedo em riste aponta o meu peito e uma vozinha divina decreta a cor da camisa que eu estou vestindo. “Memelha.” “Banca.” “Zul.” É a Stella, minha filha de 1 ano. Há alguns meses, ela começou a perceber que determinados objetos refletem a luz de uma maneira muito parecida. E que eles podem receber os mesmos nomes. Os nomes das cores. “Memelho”. Ou “zul”. Ou “amaielo”.
Ainda vivendo nos primórdios da encarnação de si mesma, e a Stella já exibe um prazer enorme em reconhecer padrões… Ela deve ter percebido, intuitivamente, que o reconhecimento de padrões é uma qualidade humana fundamental. Daqui uns anos, ela vai entender que sem reconhecimento de padrões não haveria ciência nem literatura. Não haveria música ou futebol. Não haveria computador, trânsito, Mega-Sena, padaria, pão. Não haveria nada. Fora o caos.
A capacidade de reconhecer padrões nos define. E às vezes nos limita. Racismo, por exemplo, é uma forma de reconhecimento de padrões. Só que burra. Ou mal-intencionada. Se cor é algo que reconhecemos de fato, raça é algo que inventamos. Raça é uma construção social. Biologicamente, raça não existe. O mapeamento do genoma humano, feito na década passada, não deixa mais nenhuma dúvida em relação a isso. Um médico húngaro pode ter mais genes em comum com um curandeiro camaronês do que com o próprio vizinho. A genética moderna não diz que os homens são iguais. Mas prova que eles são igualmente diferentes.
O problema é que, como a Stella já sabe, tudo que existe dentro da cabeça das pessoas passa a existir fora delas. Assim, como nós já sabemos, raça existe, sim. E, apesar de ser uma idéia que vem exclusivamente da cabeça dos adultos, é uma idéia infantil. No pior sentido. E é de conseqüências catastróficas no mundo todo, inclusive no Brasil, onde a invenção racial tem características muito sofisticadas. Tão sofisticadas que nem nós as entendemos direito. Raça, aqui, é um enigma não decifrado, que, tudo indica, nos devorará.
Social ou racial?
Existe hoje um consenso em achar que a questão brasileira é social. Discordo em termos. Não há questão social no Brasil. Só há questão racial. Primeiro, porque nosso racismo étnico, mesmo que embalado por uma levadinha bossa-nova, destrói vidas. Segundo, porque a estrutura social brasileira foi fundada há quatro séculos por uma semente racista, a escravidão, que até hoje mantém viva a noção de que alguns brasileiros podem ser tratados como gente e outros como quase gente.
Se raça é sempre uma construção cultural que visa excluir determinado grupo, o apartheid social brasileiro é tão profundo que permite considerar que os pobres aqui também formam uma raça. Sim, uma raça. A Stella ainda não sabe, mas nós sabemos bem. O radar de padrões da elite nacional detecta e estigmatiza um pobre num piscar de olhos, mesmo que esse pobre seja neto de imigrantes alemães. E o que é uma característica social que pode ser detectada num piscar de olhos, senão uma raça, mesmo que envolva várias etnias?
É urgente decifrar esse enigma. Ele já está nos devorando. Acredito que para começar a entendê-lo é preciso reconhecer que o Brasil é um país cindido em raças, de uma maneira muito peculiar. Mas não sou daqueles que desprezam o enorme afeto inter-racial, em todos os sentidos, que existe aqui. Ao contrário, acho que só daremos o devido valor a esse afeto se o perdermos de vez. Espero que não o percamos. Só que, ingenuamente, espero que ele deixe de ser afeto inter-racial para ser apenas afeto. E, talvez ainda mais ingenuamente, espero que a minha filha veja isso acontecer, para que possa viver com calma.
*CARLOS NADER, 41, é videoartista, autor do documentário Preto e Branco, que trata da questão racial no brasil, e de mais duas obras-primas: seus filhos. Seu e-mail é: carlos_nader@hotmail.com
Ilustração Sesper
