Inferno

O mundo, tal como o fizemos (eu me incluo com minha violência anterior), nos reduz a estarmos inteiramente impotentes diante de nossas criações

por Luiz Alberto Mendes em

Hoje tenho certeza absoluta de que o inferno começa com a ausência dos outros. Quando me fecho ao outro. Inferno é quando passo por um garoto da idade de meus filhos dormindo na calçada, pedindo ou vendendo algo no farol e não faço nada. O que poderia fazer, não é mesmo? São tantos e eu tão só em minha indignação... Desculpa esfarrapada, a consciência acusa.

Tenho conversado muito com meu amigo Cari sobre essas pessoas abandonadas nas ruas. Ele é preocupado com o bem-estar das pessoas. Para nós é sempre violência das mais contundentes ver crianças, homens, mulheres e velhos jogados em praças e desvãos de prédios. Não conseguimos deixar de nos chocar. Provavelmente, com o passar dos anos vendo isso cotidianamente, eu vá me insensibilizar, como quase toda a população. Por enquanto tem sido dolorido demais presenciar toda essa miséria.

Então, semana passada Cari me mandou um e-mail, todo contente. Havia encontrado uma ONG, Projeto Protege, que trabalhava exatamente dentro dessa urgência que detectávamos nas ruas. Basta telefonar – 11- 3228-5554 ou 11- 3228-2092 –, ao identificar alguém abandonado. Um veículo virá recolher a pessoa. Providenciam alimento, atendimento médico e abrigo. Ainda trabalham no convencimento para o assistido sair das ruas. Após o e-mail entusiasmado do amigo, o testemunho de pessoas atendidas por tal entidade.

Mais do que rápido, copiei os telefones em minha agenda telefônica. Até que enfim poderia fazer alguma coisa. Foram quatro anos só assistindo à miséria dos outros, impotente e agoniado com isso. Agora eu tinha uma ferramenta. Testaria.

Esta semana fui ao centro da cidade. Gosto de andar pelas ruas centrais de São Paulo. É um prazer pessoal que só quem viveu em contato físico com a cidade, como eu, pode compreender. Se visse alguém caído, abandonado, já sabia: era só ligar para o grupo de protetores. Desci na estação Sé do metrô. Ao sair, virei à esquerda. Seguia no sentido da avenida Liberdade. Não foi preciso dar mais que alguns passos para encontrar gente jogada nos cantos da praça. Pensei em telefonar imediatamente. Saquei do telefone assim qual fosse a arma da salvação.

Antes de ligar, demorei procurando os óculos para consultar a agenda, mas continuei andando. Fui encontrando muitas pessoas atiradas, dormindo a sono solto nos cantos e bancos da praça. Outros, barbudos, de olhos parados, se deixavam ficar ali na escadaria da catedral da Sé. E eram homens e mulheres aos pedaços, esparramados para todos os lados.

Quantos seriam? Comecei a contar e perdi a conta quase chorando. Como faria? Já estava acionando a entidade protetora, mas dizer o quê? Que havia uma multidão de pessoas jogadas como papel embolado pelos cantos? Que eles precisariam fretar vários ônibus para recolher todos. Provavelmente um hospital para atendê-los. Depois, restaurante, vários abrigos e uma central de convencimento para que aquelas pessoas saíssem das ruas?

Continuei andando pelas ruas da cidade e observando pessoas jogadas por todos os lados. Não havia percebido que eram tantos que se perderam ao longo do caminho. Agora atento, percebia que não saberia como resolver. Nem o tal Projeto Protege. Seria preciso proteger aquelas pessoas delas mesmas. Pois tornarão amanhã se as socorrermos hoje.

O mundo, tal como o fizemos (eu me incluo com minha violência anterior), nos reduz a estarmos inteiramente impotentes diante de nossas criações. É difícil nos distinguir dessa confusa totalidade de coisas e pessoas. A liberdade está cadastrada como propriedade. Principalmente porque vai somente até onde começa a do outro.

Se o outro é meu limite, lutar contra ele para ultrapassar esse limite faz parte de minha condição humana. Isso faz do outro adversário, cria a concorrência que dizem ser saudável. Para quem, pergunto. Porque essa gente jogada, invisível e apagada da sociedade, na minha opinião, são os que, nesse processo de adversariar o outro, saíram perdendo.

Arquivado em: Trip / Espiritualidade / Comportamento / São paulo