Humanos
escreve sobre a dor na cadeia
Sempre acreditei que o homem não pode ser assimilado por qualquer sistema de conceitos. O homem sempre me pareceu uma brecha no determinismo da existência. A vida de cada um de nós escapa ao conhecimento, por ser relativa e descontínua. Complexa, e impenetrável em sua subjetividade. O que se sabe através da ciência, no máximo, é que nada se sabe. O que se estuda, varia de indivíduo para indivíduo, descategorizando qualquer tentativa de se codificar regras permanentes ou universais.
A dor é uma realidade brutal. Cada qual a percebe à sua maneira. Não pode ser transferida e muito menos entendida. Não há palavras que expressem sofrimento, e parecem desnecessárias. O homem é constante ameaça ao entendimento. Um arame esticado no espaço sem fim.
Estar preso é muito doloroso. Experiência inenarrável por ser impossível de ser dimensionada. Liberdade é valor somente avaliado de verdade por quem a perde. O presidiário sofre. E não pouco, como levianamente se possa pensar.
Mas se estar preso é dolorido, imagine-se estar preso e doente. Imagine-se pior ainda: estar preso e doente, com AIDS. Terrível, não é mesmo? Pois é, e são muitos. Milhares de seres humanos em tais condições. Esse é o caso do Santista e do Rafael.
Fui procurar Rafael no hospital do pavilhão quatro da Casa de Detenção. Sempre fora pessoa combativa, envolvida em confrontos e reivindicações. Nem sempre concordei com seus extremismos. Mas sempre o respeitei, mesmo em seu modo explosivo de ser. Principalmente por sabê-lo portador do vírus HIV e ainda trabalhar como enfermeiro de companheiros mais adoecidos que ele. Para mim, merecedor de todos descontos possíveis.
Nunca o vira em ação. Procurei-o. Precisava de remédios para um amigo adoecido. Adentrei ao hospital e pedi para um companheiro chamá-lo. Não demorou em voltar. Rafael estava ocupado. Atendia um doente. Não podia perder a viagem. O transito na prisão era extremamente complicado. Pedi ao funcionário zelador do hospital autorização para entrar e procurá-lo.
Autorizado, fui procurá-lo nas celas. Companheiros prostrados sofrendo de males diversos. Era triste. Desolador. Fui encontrá-lo na cela do Santista. Eu o conhecera. Era forte e saudável. Jogava bola na seleção da casa. Desses meninões criados na areia da praia.
Olhá-lo agora, ali derramado naquela cama, em pele e ossos, assustou-me. Fez pensar que o homem é um instante em vão. Vive em sangue e esperança, para tombar ali, varado de dores e ansiedades. Em mim, a consciência de estar vivendo um pesadelo inteiramente real.
Rafael estava com um copo de liquidificador nas mãos. Um líquido espesso, cor de mamão. Enchia um copo de plástico à mesa, quando o cumprimentei. Recebi um meio sorriso, em resposta. Parecia estranho. Assim concentrado, preocupado com o que fazia. Num rádio, tocava música do Pink Floid que falava de professores e um muro.
Falei do amigo adoecido. Rafael me escutava aparentando estar desatento. Passou manteiga em um pão, de olho tenso no Santista. Este ora abria, ora fechava os olhos. Um esmeril a lamber em dentes o aço dos nervos, sem grito ou estilhaços. Não parecia consciente. Na verdade, aparentava nem estar vivendo mais. O enfermeiro fez algumas perguntas sobre como estava o amigo pelo qual procurara.
Levantou-se, sacudiu Santista. Ajeitou travesseiros às suas costas e ofereceu-lhe o copo de vitamina e o pão amanteigado. As mãos descarnadas receberam a alimentação. Olhos assustados negavam. Pareciam afirmar que não conseguiria engolir aquilo. Mesmo assim, com dificuldade imensa, levou o pão à boca e mordeu. Ingeriu pequeno gole de suco de frutas. Estávamos em tensa e silenciosa torcida. Quando o pão e o suco desceram por aquela garganta fina como papel, suspiramos aliviados. Quase bati palmas ou gritei que era gol. Rafael relaxou e me deu a atenção que eu necessitava.
Disse que não me impressionasse. Havia outros em piores condições. Nisso a mão do Santista tremeu. O copo já ia lhe escapando. Mais rápido que o vento, o amigo enfermeiro apanhou o copo na descendente. Com enorme paciência, explicou. Era preciso beber e comer. Era sua vida que ele estava tomando. Colocou o copo na boca do rapaz e desceu mais um gole. Parecia um anjo. Quando tentava empurrar mais uma golada, Santista recusou-se. Não queria beber ou comer mais nada.
Num estalar de dedos Rafael transforma-se, levou o copo à boca do paciente e forçou. A cena ficou dantesca, o ar recarregou de tensão. O doente, sem forças, tentando afastar o copo da boca, cerrou os dentes O enfermeiro subiu na cama, e colocou o companheiro adoecido entre os joelhos. Com uma mão, abriu-lhe a boca apertando a junção do maxilar e com a outra, despejou mais um gole. O doente engulhou. Uma espuma colorida surgiu no canto de seus lábios. O amigo vociferou:
-Vamos, porra! Engole logo isso aí, seu filho da puta! Não tá vendo que vai morrer se não se alimentar? Vai morrer feito covarde, se entregar sem luta? Vamos, seu animal, reage, caralho!
Mesclando palavras duras, rudes, com outras de estímulo, em pouco tempo, virou o copo todo goela abaixo do companheiro adoecido. Eu observava, atônito. O dono daquela vida desistira. O amigo o acordava do torpor da morte em que estava mergulhando. Retornou à possibilidade de vida na marra.
Que tipo de ser humano era aquele, questionava-me. Rafael não tinha religião e era semi-analfabeto. Julgava-se ladrão, bandido. Portador do vírus assassino. Fazia aquilo por quê? Por amizade, solidariedade, ou por que defendia sua vida na vida do outro? O saber, a ciência, o conhecimento não penetra em tão extremada circunstância. Tudo ali é coração. Turbulência e passagem. Saí dali com o medicamento que fora buscar, mas compungido. Provavelmente não veria mais aquela gente tão sofrida. Tudo me parecia confuso, tropeçava em minhas incertezas. Havia esperança, mas também muita dor, sofrimento. Os mais rudes e brutais, de repente, transformam-se nos mais humanos. O que pensar? Quem era o ser real? Creio que um só que pode ser humano ao extremo e cruel ao outro extremo.
Blindados em nossa emoção, vivemos a administrar a vida qual fora um negócio. Vivemos entre silêncios secos, unidos a nós mesmos, como num espelho. Estranhos e iguais, cegos a flutuar no escuro. Mas, como diria o poeta, ninguém é uma ilha e toda certeza é que não há certeza alguma.