Homossexualidade é tema?
O assunto só estará resolvido quando não precisar mais ser debatido ou defendido
não deveria ser. O assunto só estará resolvido quando não precisar mais ser debatido ou defendido
Na sofisticada Inglaterra das primeiras décadas do século 20, viveu Marguerite Radclyffe-Hall, uma talentosa escritora de família aristocrática. Ela publicava (belos) poemas, ensaios e romances, era razoavelmente lida e bastante respeitada pela crítica. Lésbica, se vestia como homem e era chamada, pelos amigos, de John. Num mundo onde ainda não havia tabloides e as elites não eram perseguidas pelas lentes dos paparazzi, John era aceita em seu meio. Mesmo quando seduziu a esposa de um poderoso almirante ela foi tolerada. Mas quando, em 1928, ela publicou O poço da solidão, seu 13º livro, um romance que foi considerado de temática lésbica, aí o caldo entornou. O livro foi censurado nos Estados Unidos e na Inglaterra e depois, graças à polêmica, tornou-se um best-seller mundial. O barulho que causou foi suficiente para que a mídia transformasse O poço numa espécie de bíblia da homossexualidade feminina e para que Radclyffe-Hall entrasse para a história como “uma importante escritora lésbica”.
Ora, a homossexualidade precisa deixar de ser tema. Ou, em outras palavras, o tema da homossexualidade só estará resolvido quando não precisar mais ser debatido e defendido. Quando a Trip não precisar mais ter uma edição com esse assunto estampado na capa. Quando a orientação sexual de cada um não for motivo de vergonha nem de orgulho. Quando ninguém mais pensar nisso na hora de qualificar uma pessoa. Quando a orientação sexual não for mais relevante no julgamento dos indivíduos do que (parafraseando Bob Marley em “War”) a cor dos olhos.
E essa é uma tarefa na qual nossa sociedade terá que abrir caminhos. Não adianta procurar na história ou na antropologia os argumentos em defesa dessa causa, pois
o que se encontrará são, ao longo do tempo, as mais diversas atitudes. Fala-se muito dos gregos e dos romanos antigos como entusiastas da homossexualidade ou, talvez melhor, da bissexualidade. Mas, ao que tudo indica, a coisa era um pouco mais complicada. Em todo caso, eles eram bem mais liberais do que a turma da outra tradição cultural que pesa sobre nós, a judaico-cristã. Esta, incorrigível adepta do hábito de se meter na vida alheia, em geral preferiu tratar da homossexualidade na base da paulada, quando não da fogueira. O fato é que, independentemente de como nossos avós se comportaram com relação ao tema, estamos, agora, por nossa conta.
Com todos os defeitos que têm, as sociedades ocidentais (Brasil incluído) estão entre as mais tolerantes da história. As atitudes contra minorias religiosas, étnicas e de orientação sexual têm sido bastante combatidas, com variados graus de sucesso, mas numa curva de melhora constante. Em 1990 a Organização Mundial de Saúde deixou de considerar a homossexualidade como uma doença ou um desvio de conduta. A democracia, não custa lembrar, é menos a vontade da maioria (que facilmente se transforma em ditadura) do que o respeito às minorias. Em todo caso, no ponto em que estamos, embora sejam fundamentais ações do estado, da mídia, de escolas etc., a tarefa cabe principalmente a cada um de nós. Exercitando-nos na prática da tolerância todos os dias, o tempo todo. Até que chegue o dia em que Marguerite “John” Radclyffe-Hall seja lembrada apenas como uma grande escritora que tratou, entre outros temas, do amor.
*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br