Holocausto à brasileira
Goldman: "barbaridade ocorre porque o Estado não cumpre sua função mais básica"
Às vezes a barbaridade ocorre simplesmente porque um Estado não cumpre sua função mais básica: defender a vida de seus cidadãos. Só no ano passado, o Brasil registrou 52 mil mortes violentas
Desde criança sentia uma atração morbosa por histórias do Holocausto judaico na Segunda Guerra. Mais do que horror, raiva ou tristeza, aquele inferno animal feito de câmaras de gás e fornos crematórios me fazia sentir uma curiosidade visceral – às vezes, confesso, até uma vontade perversa de também estar lá, em Auschwitz ou Majdanek. Passava horas folheando livros como Inferno em Treblinka ou … E o mundo silenciou, fascinado com fotos dos corpos empilhados em valas comuns. Olhava para os cadáveres imaginando quem eram aqueles meninos sem olho e sem nome, tentando entender se um cadáver ou outro podia ter sido um dos irmãos dos meus avós.
Com o passar dos anos, a atração morbosa mudou muito, mas não diminuiu, só aumentou. Em vez de simplesmente me identificar com as vítimas, passei também a me interessar mais pelos carrascos. É um desafio bem maior (e mais útil, acredito) entender os malvados e ver o mundo através de seus olhos. O que pode levar um homem religioso e bom pai de família – como, por exemplo, Adolf Eichmann, um dos mais importantes arquitetos do Holocausto – a se comportar de forma tão hedionda? Quais são os passos, causas e contextos que propiciam a transformação de um homem comum em monstro?
No arrepiante No meio das trevas, a historiadora austríaca Gitta Sereny analisa a fundo esse processo. O livro investiga a vida de Franz Stangl, comandante dos campos de extermínio de Sobibor e Treblinka, responsável pela morte de milhões de pessoas. Curiosamente, depois da guerra, Stangl se refugiou em São Bernardo do Campo (SP), onde era funcionário da Volkswagen. Foi preso em 1967, extraditado para a Alemanha e condenado a prisão perpétua.
Não existem provas de que Stangl tenha matado – sequer maltratado – ninguém com as próprias mãos. Ele não era sádico e nem muito racista. Sempre impecavelmente vestido, esse excelente organizador de recursos se orgulhava pelo funcionamento perfeito de seus campos de extermínio, onde, em média, eram assassinadas 12 mil pessoas por dia. Para ele, os prisioneiros eram apenas objeto de sua missão e não seres humanos. “Era a minha profissão. E eu gostava dela. Ela me dava muita satisfação”, admitiu ele na prisão em Düsseldorf.
Nas 70 horas que passou entrevistando Stangl, Gitta Sereny se interessou em revelar sobretudo sua vida na infância, a relação com seus pais, com seus amigos, sua esposa e suas filhas. Gente que ele amava e odiava. Também questionou sobre como ele se sentia a respeito das circunstâncias que o trouxeram à prisão. Stangl se justifica de forma lógica e humana. Em certos momentos obriga o leitor até a se identificar com ele e, às vezes – contra a própria vontade –, aceitar suas deploráveis escolhas.
Violência Brasileira
O livro demonstra a importância – vital para qualquer sociedade – de entender seu próprio papel na construção da indiferença patológica que um homem pode sentir pelo outro. O mais assustador não são os raros psicopatas, os poucos loucos que aqui e ali saem matando gente – esses loucos são quase uma excepcionalidade normal. O mais assustador é um Estado que sanciona, estimula o horror e transforma a barbaridade em ordem. Isso pode ser feito de forma ativa, planejada, seguindo uma ideologia – como na Alemanha nazista. Mas às vezes a barbaridade ocorre simplesmente porque um Estado, mesmo democrático, se omite e não cumpre sua mais básica função: defender os cidadãos. Como no Brasil, onde no ano passado houve 52 mil mortes violentas.
O Holocausto e a violência brasileira são dois males de dimensões e raízes históricas completamente incomparáveis. Mas circulam pelo país cerca de 17 milhões de armas de fogo e nós, brasileiros – patologicamente indiferentes –, perdemos a capacidade de nos assustar com números absurdos. Seria saudável lembrarmo-nos deles da próxima vez que alguém se vangloriar por sermos a sexta economia do mundo.
*HENRIQUE GOLDMAN, 48, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br