POR ANDRÉ CARAMURU AUBERT*
Para saber como lidar com a gente, nossos pais liam Meu filho, meu tesouro, do pediatra americano Benjamin Spock. Agora, tentando entender meus filhos (e nosso tempo), estou lendo A felicidade paradoxal – Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo, do filósofo francês Gilles Lipovetsky, que discute a realidade contemporânea pós-industrial e que acabou inspirando esta coluna. O mundo aparentemente ficou mais fácil: menos ideologias, abundância de alimentos pré-prontos, um monte de canais na TV, mais (e mais móveis) telefones… Por outro lado, com toda certeza, o mundo ficou também mais complicado: consumimos tudo, vorazmente, o tempo todo. De recursos naturais a relacionamentos, de gadgets a viagens, somos obcecados pelo novo. Pode ser difícil de acreditar, mas, não faz muito tempo, era um momento solene nas famílias quando o pai entregava ao filho um relógio, muitas vezes herdado do avô. Automóveis, televisores e geladeiras eram investimentos familiares para muitos anos. Até mesmo casamentos eram planejados para durar bastante.
VELOCIDADE ONIPRESENTE
A hipervoracidade invadiu todos os aspectos da nossa vida: obcecados pelo corpo, consumimos orgânicos, vitaminas e academias; obcecados por sermos vistos por alguém, escrevemos blogs e postamos vídeos na web; obcecados por novidades sonoras, enfiamos no MP3 player mais músicas do que nossos pais tiveram, a vida toda, em LPs. Antes éramos felizes “quando” comprávamos algo. Hoje, somos felizes “enquanto” compramos algo. Trocou-se a obsolescência programada (os produtos eram projetados para durar um certo tempo) pela obsolescência desejada (trocamos os produtos o mais rápido possível). Na média mundial, 70% dos produtos hi-tech são substituídos em até três anos, mesmo que em perfeito estado. Na sua última troca de celular, o antigo estava mesmo velho?
No início da Revolução Industrial muita gente lamentava, romanticamente, a perda de coisas como a vida ao ar livre, o tempo para leitura, a calma. Mas ainda assim o mundo mudou e, deve-se admitir, em muitos aspectos para melhor: os avanços na ciência, na tecnologia e na indústria levaram saúde, conforto e lazer para muito mais pessoas. Não é diferente agora. E, seja honesto, você gosta do Che Guevara, talvez até topasse usar (consumir) uma camiseta com a foto dele, mas jamais viveria no país que ele ajudou a construir. O maior problema talvez seja que as coisas, que já estavam rápidas, seguem acelerando. Hiperconsumo, hiperprodução: só a Sony lançou, em 1995, 5 mil novos produtos, a maior parte de vida curta. Hollywood produzia uma média de 140 filmes por ano em 1976, subiu para 385 em 1990 e 445 em 2001. Sempre consumindo, sempre conectados, sempre digerindo, resta-nos muito pouco tempo para pensar na vida, para o ócio, para não fazer nada. E isso, acredite, faz muita falta.
Há 99 anos, o escritor italiano F. T. Marinetti (de grande influência tanto sobre os modernistas brasileiros quanto sobre a fascistada de Mussolini) lançava o Manifesto futurista, um violento culto aos novos tempos industriais. Num trecho, ele afirma: “O tempo e o espaço morreram ontem. Nós já vivemos no absoluto, pois já criamos a eterna velocidade onipresente”. Nada mais atual. Mas acho que, hoje, assustado, Marinetti seguramente reclamaria do ritmo da muvuca e pediria um pouco de calma…
*André Caramuru Aubert, 47, é historiador e trabalha com tecnologia. Suas taxas de voracidade estão sob controle. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br
