“Liberdade é pouco. O que desejo não tem nome.”
Clarice Lispector
A chama que permeava a vida em mim havia sido fogueira. Hoje o dia era vida porque prometia ser inteiro em cada instante que se perdia para o passado. Tudo hoje ameaçava se transformar em prazer. O vento frio uivava nas árvores (moro próximo a uma mata, no Embu, SP). Aquele som trazia um sentimento de firmeza, segurança, enchendo-me de tranqüilidade, como quando chove. Tudo podia virar essa alegria que vai inundando aos poucos, como a vida a nascer, delicadamente.
Hoje fui convidado para fazer um teste na Fórmula Academia, no subsolo do shopping Eldorado. Mais precisamente, avaliação da aptidão física. Claro, aproveitaria para exercitar-me e conhecer os aparelhos com os quais teria que lidar, caso me matriculasse. Fiquei um pouco apreensivo. Mais de ano e meio sem exercícios e tenho estado com problemas nos intestinos. Ninguém vai para um teste, seja ele qual for, sem preocupação. Acho que só os inconseqüentes. Em mim havia o receio de não me sair bem, estar doente, incapaz, ou pagar ridículo.
É terrível estar preso. Muito pior é estar preso e doente. Quase a passo da morte; não há muito pelo que se esforçar por viver. Então, em minhas três décadas na cadeia, fiz de minha vontade uma espada afiada que haveria de defender minha existência. Sabia que somente sobreviveria se mantivesse meu corpo na melhor forma possível. A decisão deveria ser inflexível. Consegui; estou aqui fora e inteiro.
Utilizávamos pets cheias de água e cabos de vassoura para improvisar nossos pesos. Caixotes de banana eram nossos bancos de treinamento. Corria trocentas voltas em torno do pátio de recreação. Cansava mais mentalmente por conta da paisagem constante de grades e muralhas. Era quase dolorido sair trotando todo dia, mas sobreviver era preciso.
Novos templos
Ao chegar, já senti o peso e o profissionalismo de uma empresa há 12 anos no mercado de fitness. Tudo estava organizado… Derlandio, do marketing, me encaminhou ao vestiário e depois ao setor de avaliação. Fui apresentado à equipe. Sob a coordenação do dr. Fernando C. Torres e o comando do dr. Moacir, dois fisiologistas, Giuliano e Aurélio, e um professor, Diogo, me rodearam. Pediram para que tirasse relógio, camiseta e tênis. Aquilo me assustou um pouco. O nu perto dos outros ainda me constrange, particularmente na frente de homens.
A princípio parecia fácil, desconfiei não sem razão. Logo me colocaram em cima de uma esteira e colaram sensores em meu peito. Fiquei ligado a uma dezena de fios. O médico montou o equipamento de tirar pressão em meu braço. Coloquei um bocal, como de mergulho, que me tomou a boca inteira. Do bocal, um tubo partia para uma máquina. Meu nariz foi tapado com uma espécie de pregador, respirar só pela boca. A esteira foi ligada e aos poucos acelerada e inclinada. Folgava. Eles não sabiam que malhar na prisão é socar paredes até os nós dos dedos sangrarem, de raiva, de ódio. Ou então correr do Choque da PM enfiando bala para todos os lados. Mas começou a pesar e o professor Diogo incentivava para que eu segurasse a onda. Quando me senti na curva descendente do desmaio, pedi penico. Foi difícil a recuperação.
Os resultados de todos os meus testes saíram quase que instantaneamente. Eles são realmente eficientes. Aurélio interpretou dando verdadeira aula de fisiologia. A minha gordura corporal está abaixo da média. Aos 54 anos de idade, estou com 68 quilos e tenho apenas 1,66 metro de altura. 80% do meu peso é de massa magra e apenas 20% de massa gorda. Minha classificação geral foi excelente. Dr. Moacir veio me parabenizar. Puxa, eu nem desconfiava. Fui apresentado para o coordenador de musculação, Mauro. Gostei de imediato. Parece que as pessoas que trabalham com corpo têm mais calor humano. São tão mais alegres, doam-se ao que fazem e parecem mais felizes. O ambiente é agradável, a alegria solta no ar; todos brincam, clima leve, suave. E tudo isso envolto por uma organização impecável, como uma camada macia a proteger.
Fez breve explicação e já fomos para os aparelhos. Passei por uma série que ele prescreveu. Quer me deixar em forma para depois fazermos treinamentos específicos. Conversamos o tempo todo, o cara é agradável, generoso e competente. Dali partimos para as piscinas. Gostei demais das locações. As três piscinas semi-olímpicas e a infantil parecem milagres da engenhosidade humana. Onde já se viu; no meio do shopping, quatro piscinas? E enormes. Já me inscrevi: vou aprender a nadar, um sonho de liberdade, com o Alexandre das atividades aquáticas. Houve uma sintonia tão agradável que, ao final, eles me concederam um mês de academia para que possa conhecê-la realmente, independente de escrever sobre. Vou aproveitar para me deixar em forma e, se puder, nunca mais saio daquele templo de qualidade de vida.
* Luiz Alberto Mendes, 53, cumpriu pena de 31 anos e dez meses por assalto e homicídio. Nessa época, ainda enclausurado, começou a escrever para a Trip depois de seu livro Memórias de um Sobrevivente cair na Redação e impressionar pela qualidade do texto e força de suas histórias. Há quase dois anos Mendes conquistou sua liberdade e hoje em dia encara qualquer um numa corrida. Seu e-mail é: lmendes@trip.com.br
Agradecimento Fórmula Academia
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Crédito de fotos: Christian Sievers
