Guerra na Prisão

por Luiz Alberto Mendes em

Confronto

 

Era uma guerra.

Sairíamos da cela e eles estariam lá em cima, em nosso local de recreação, na cobertura do prédio, nos esperando para nos matar. Cadeia pública vertical de Santos, começo dos anos 80. Quase todos os dias matava-se alguém. Quando não dois ou três. Os carcereiros sequer perguntavam sobre a autoria do crime. Haviam companheiros de cárcere com meia dúzia de assassinatos dentro da prisão e sem responder por processo algum. Quando os guardas abriam o pátio para voltarmos às celas, encontravam os cadáveres no banheiro, esvaídos em sangue. Pediam aos presos que trabalhavam na faxina para levarem o corpo (ou corpos) para a carceragem. Capítulo encerrado para aquele (ou aqueles). Com certeza, nossos inimigos estariam armados com facas improvisadas, nos esperando subir.

Na ultima revista geral que havia acontecido na prisão, nossas armas haviam sido encontradas pelos policiais. Estávamos desarmados naquele lugar extremamente perigoso, mas eles não sabiam. Queriam assassinar o Thomaz, nosso colega de cela. Os motivos eram os de sempre: drogas. Nosso companheiro conseguia contrabandear drogas para dentro da prisão. Aqueles que se tornaram nossos inimigos queriam que ele pagasse pedágio. Ou seja: queriam uma quantia da droga (senão toda) contrabandeada, gratuitamente. Aquele era o grupo mais poderoso da prisão. Suas facas eram ensanguentadas; já haviam matado mais de dez outros companheiros.

Estavam no domínio e queriam a parte deles em tudo o que houvesse lucro. Ceder seria extremamente desmoralizante para Thomaz e para nós que morávamos com ele. E moral é quase tudo o que o preso possui. Caso perca, acabara com o respeito à sua dignidade na prisão. O caso era extremamente grave; somente unidos venceríamos o medo e enfrentaríamos a questão como homens.

Estávamos em treze homens naquele xadrez. Diante da firmeza do parceiro em não aceitar a extorsão, conversamos e resolvemos apoiá-lo até o fim. Surgiram vozes discordantes, mas percebemos que o medo as impulsionava. A decisão foi tomada. Iríamos sim para o pátio. Estávamos desarmados, provavelmente seríamos feridos ou até mortos, mas não deixaríamos o Thomaz morrer sozinho. A indignação diante da pressão que sofria nosso parceiro e a questão fechada por nossa decisão, eram nossa força.

Na hora em que o guarda abriu a porta da cela para sairmos para a recreação, mais da metade dos parceiros que haviam decidido conosco não saiu. Falharam, nos deixaram em falta. Confesso que isso me fez arrepiar de medo. Meus nervos pulavam e foi a pulso que atravessei aquela porta de ferro. Mas fui. Tinha que ir senão não confiaria mais em mim, mas a ausência dos companheiros acovardados me balançou seriamente. Na galeria nos entreolhamos; somente cinco de nós havia saído; estávamos em uma armadilha. A quadrilha que nos esperava era muito mais numerosa e composta de pessoas acostumadas a matar. Nós os vimos matando o Carioca algum tempo atrás. Seria mais fácil nos pegar em cinco do que em treze, obviamente.

Não conseguíamos falar entre nós. A boca secara, estávamos no auge da tensão, qualquer palavra poderia por tudo a perder. Senti que poderia desabar, chorar como uma criança ou sair correndo de medo, de repente. Era preciso injetar uma dose cavalar de coragem e auto-determinação para colocar o pé dentro daquele solário. Sol estava quase a pino, brilhando pesado nos olhos e abaixando as pálpebras. Lá no fundão do pátio, nossos oponentes reunidos, nos aguardando. Eles não acreditavam que viríamos. Tinham certeza de que cederíamos, como cederam todos os demais. Nos subestimaram, acharam-se poderosos e essa foi nossa sorte. Dizia-se que contra a força não havia resistência e, por conta disso, muitos companheiros desistiam antes de começar a luta. E foi por conta disso que o grupo dominante nunca fora questionado ou colocado à prova. Quando nos avistaram, percebi a agitação entre eles.

O medo agora estava completamente extinto, como uma fogueira que se apagava. Sobravam as brasas quentes. Era a hora da ação, de ser homem de fato ou viver como rato. Olhei meus parceiros e senti firmeza em cada um deles. Ser morto em um tiroteio, ou por uma doença era algo que acontecia. Já estivera sob tiroteio, fora baleado várias vezes e vira doenças ceifarem vidas queridas. Acontecia e pronto. Mas nós procurávamos. Jamais pensei que fosse tão fácil me levar à morte. Havia algo de excitação, eu diria que até uma certa sensualidade naquilo tudo. O que sustenta um homem quando ele se decide a encarar o pior que possa lhe acontecer?

O velho Thomaz, com seus ralos cabelos dançando ao vento, descoloridos pelas chuvas e pelo sol, me olhou e parecia estar zombando de tudo aquilo. O Pequeno possuía uma perna mais curta, fruto de uma bala ao ser preso. Manquitolava firme, de olhos fixos nos nossos inimigos, nem piscava enquanto caminhava. Dé era o mais novo e o mais inconsequente. Caminhava decidido, mas nos olhava e sorria nervoso, estava pela aventura, mas agora a aventura acabara e ele precisava de coragem. O nosso contágio o ligava a nós como fizéssemos parte de um único corpo. João Aires era nosso "faqueiro", o único armado de nós. Fora ferramenteiro. Estava preso por haver matado a esposa e o amante com requintes de crueldade. Amava a mulher e sofria horrores de remorsos; eu escutava seu choro nas madrugadas. Estava com um pedaço de cano de ferro amassado e com ponta na cintura. Leitão era o único de nós que caminhava tranquilo. Era uma espécie diferente de gigante. Daqueles bons, que compartilham com todos de sua vida de gente grande.

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Continuo e concluo amanhã.

Luiz Mendes

21/08/2013.

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