Grande garoto
Prodígio das HQs João Montanaro fala de rotina e diz que amigos não entendem suas charges
Foi difícil marcar a entrevista com João Montanaro, algo natural, já que se trata de um cartunista que tem a responsabilidade de publicar charges na nobre página dois da Folha de S.Paulo. Suas piadas sobre Dilma, Marina, Lula e Serra ficam logo acima dos editoriais e comentaristas do jornal e dividem espaço com os consagrados Angeli, Jean e Bennet. Isso, mais o fato de ele ter 14 anos, estar no nono ano do ensino fundamental e em semana de provas - como contou sua mãe, Sueli Montanaro - foram na verdade os motivos da demora para atender a Trip em sua casa, no bairro paulistano do Socorro.
Essa disparidade entre mundos marcou a conversa com João, um garoto mostrando lampejos de adulto durante a entrevista. Sua dificuldade em física, química e matemática contrasta com seu gosto musical sofisticado e um currículo que, além da Folha, inclui trabalhos para Mundo Estranho, Mad e um livro publicado, Cócegas no raciocínio. Ao mesmo tempo em que conta histórias de visitas à redação do jornal, diverte-se admitindo que só recentemente aprendeu a dizer a palavra "ombusdman": "Eu falava 'ombiudusman'!".
Com a mesma firmeza que João Montanaro fala com o repórter sobre os desenhos animados de sua preferência - Ren & Stimpy, Simpsons e Futurama, discorre sobre suas inspirações na hora de criar charges. Antes de ir à escola e depois de terminar "um frila para [o caderno] 'Ilustríssima'", João conversou com a Trip em seu estúdio nos fundos da casa que divide com os pais e dois irmãos (um gêmeo bivitelino, outro mais novo). Entre muitas piadas e risadas, contou que sua rotina não mudou muito desde que passou a publicar charges na Folha e que já tirou nota baixa na aula de artes.
Quando você começou a desenhar?
O Orlando Pedroso, que é ilustrador da Folha, diz que todo mundo desenha, mas ninguém continua e vira cartunista. Todo mundo desenhava na escola, eu desenhava. O professor pedia: “Copia a Mônica”. Só que eu continuei compulsivamente, não parei mais.
Como descobriu os quadrinhos?
Caiu um livro da estante chamado Brasil 85, de charges. Tinha lá charges antigas do Angeli, do Glauco. Eu vi aquele negócio e disse: “Uau!”. Comecei a partir daí. Era um livro do meu pai. Eu devia ter uns oito anos. Só fazia de bobeira, nem entendia o que era o negócio.
Desenhou quando o primeiro quadrinho?
Eu copiava da TV. Via um episódio inteiro de Bob Esponja e passava pra quadrinhos. Fazia um quadradinho com olhinhos em vários quadrados até o final do episódio.
Do Bob Esponja já percebi que você gosta bastante, estou vendo esse boneco grande dele na sua estante. Do que mais?
[Mexe no iPhone e mostra] Não sei se você conhece um desenho chamado Ren & Stimpy. Baixei uns episódios. Para mim, é um dos melhores desenhos que já fizeram depois dos Simpsons. É muito bom! Eu era moleque, devia ter uns cinco anos, e passava na Nickelodeon [canal da TV paga]. Não entendia nada, mas era legal ver os caras dando porrada, aquelas caras feias. Agora eu assisto á noite e entendo tudo. É como o Bob Esponja, quando eu assistia com meu pai, às vezes ele dava risada e eu não. Agora que eu dou risada, é muito legal esse negócio. Por isso eu gosto de Bob Esponja, Ren & Stimpy, Simpsons, todos esses desenhos maus. Menos Uma Família da Pesada, que é cópia de Simpsons. Gosto de desenhos dos anos 50 também, tipo a Pantera Cor-de-Rosa porque gosto do estilo. Tenho até o livro de um ilustrador, Jim Flora, parece aquelas embalagens de sucrilhos.
Quando publicou seu primeiro desenho?
Eu tinha ido num acampamento e tinha um jornalzinho no hotel. Eu desenhei e dei para o pessoal de lá. No dia seguinte, estava no jornal. Fui em outro, na Granja Viana, que sai a cada 15 dias e minha tia falou com a dona e eu tinha um espaço lá. Entregava qualquer coisa e eles publicavam. Era a cada 15 dias e eu era sempre o último a entregar. Como eu era bem “de menor”, devia ter uns 10 anos, tinha um contrato que dizia que eu não era obrigado a entregar e eles não eram obrigados a publicar. Em duas edições seguidas não teve meu desenho porque eu estava sem saco. Depois passei para a Mad, a Folha. Mas a primeira publicação legal que muita gente viu foi a Mad. Muita gente não [risos]. A Mad sempre foi meio caída.
Como é o contrato com a Folha?
Tenho um contrato com eles, mas sou obrigado a entregar. Meus pais assinam. Faço uma charge por semana. Às vezes rola outra coisa, como quando o Glauco morreu, me ligaram, eu estava indo para escola, para pedir um desenho sobre ele. Ou até ilustração. O resto é de freelancer, como os cartuns da “Ilustríssima”.
Você tem 14 anos e já publica em um espaço nobre na Folha de S.Paulo. Você fica nervoso?
Procuro não deixar cair a ficha. Se cair a ficha de que sou chargista da Folha ao lado do Angeli, do Jean, do Bennet, eu fico maluco. Continuo fazendo com responsabilidade, mas sem cair a ficha. Eu gosto. Já via jornal antes, fazia charge, muita charge, quando era pequeno. Eram sem graça. Eu via Jornal Nacional todo dia, gostava daquilo. Acabei parando para fazer mais tiras. Minha primeira publicação na Folha na “Folhinha”.
"Se cair a ficha de que sou chargista da Folha ao lado do Angeli, do Jean, do Bennet, eu fico maluco"
Você lia jornal também?
Jornal impresso eu não lia muito, lia mais na internet. Mas agora tenho que ir na banca todo dia para comprar porque meu pai fala que eu não saio de casa e preciso ir lá. Agora sou amigo do cara da banca, ele me deixa pagar só no final da semana. Comecei a ler mais jornal agora, só não gosto de economia. Tem até uma história legal. Na segunda vez em que eu fui na redação da Folha, o Fábio Marra [editor de arte da Folha] estava me apresentando ao pessoal da primeira página. O pessoal de economia fica ali perto. Eles perguntaram: “Você lê o jornal todo?”. Respondi: “Leio”. “Do que você gosta?”. “Ah gosto do primeiro caderno, 'Ilustrada', 'Ilustríssima', 'Folhateen', só não gosto de economia. Todo mundo começou a dar risada. Aí eu disse: “Quem lê economia?”. Riram mais ainda. Quando eu olho pro outro lado o editor de economia está olhando para mim. Pensei: “Putz! Comecei mal já!”.
O que mudou na sua rotina?
Só tenho que acordar mais cedo para ler o jornal. Leio à noite também. Só a sexta-feira mudou. Antes eu acordava às 10h, fazia minha lição e ia assistir TV até a hora de almoço, para depois ir à escola. Agora acordo para ler o jornal, faço três esboços até às 10h, eles aprovam ao meio-dia. Começo a fazer a charge, vou para a escola, e [depois] termino a charge. Não é cansativo, mas tem mais responsabilidade. Como meu prazo é até às 20h, dá para levar. Volto da escola às 18h, duas horas para pintar está legal.
Você gosta da escola?
Eu gosto da escola, eu tenho que gostar [rindo]. Sou um bom aluno, tiro notas boas. Fico de recuperação como todo mundo, mas poucas vezes. Sou o chamado nerd. Tem um grupo na minha sala [de nerds]. Tem o grupo que só fala de futebol e tem o nosso, que só fala de videogame. Eu fico nesse. Mas às vezes eu vou para lá também, falar de futebol. Gosto de zoar o Corinthians. Odeio futebol.
Não torce pra ninguém?
Sou palmeirense não-praticante. Mas sou bom aluno. Ainda mais que eu leio jornal, os professores gostam. Os professores de história. É uma matéria que eu gosto. A última prova foi sobre Segunda Guerra, é legal.
Foi bem?
Fui. Na minha escola, o total da nota é nove. O ponto que resta é de participação na aula. Devo ter tirado oito e meio.
Boa nota.
É bom. Segunda Guerra é “mó” fácil.
E matemática, física?
Sou mais ou menos, pra mais. Mas tenho uma certa dificuldade. Física é um negócio chato. Seis vezes dez [elevado] a 23, o número de mols de H. Aí eu sou médio. Essas de conta não sou bom, não. De artes eu já fiquei mal também.
Sério?
Tinha uma lição de casa que era uma história em quadrinhos. Eu fui mal! Esqueci de fazer a lição. Na minha escola, o professor passa “vistando”. Se você não fez, vai para a internet, na internet mamãe vê, se mamãe vê você apanha. Mamãe não me bate [risos]. Eu tinha que fazer uma história em quadrinhos. Foi uma cena de cinema. Ele foi chegando perto e eu lá... Eu fiz uma que se chamava: “Policarpo, o invisível”. Todos os quadrinhos estavam em branco. No penúltimo era o cara falando: “Penso, logo existo”. No último: “Droga, não deu certo, continuo invisível”. O professor disse: “Não acredito, João”. Na reunião ele disse para os meus pais: “Pô, o João podia ser melhor, ele faz quadrinho, gosta de desenhar”. Fiquei mal nessa matéria, mas depois recuperei.
"Eles [amigos da escola] são mais engraçados do que eu. São daqueles que tem piada rápida, sabe? Eu sou o chato e sério. É deles que eu tiro algumas coisas para as tiras, algumas vezes. Não pago pra ninguém. Eles não sabem o que são copyrights."
Existe uma diferença de maturidade entre você e seus amigos da escola?
Um pouco. O Laerte uma vez me disse que eu já sintonizei no canal de velho. Mas eu quero comprar um videogame. Um Play[station] 3, meu amigo está vendendo por mil “pilas” com quatro jogos originais, é uma boa. Tô economizando pra isso, só que papai tem que deixar. Mas, por exemplo, a gente foi assistir A origem. Alguns dos meus amigos não entenderam. Tinha algumas coisas que precisava de referência, como a escada sem fim. É bom nesse sentido. Ruim é quando eles estão numa conversa e eu não consigo porque não sei do que eles estão falando. Por exemplo, GTA [o jogo Grand Theft Auto]. Mas falo besteira com meus amigos, eles são parecidos comigo. Na verdade, eles são mais engraçados do que eu. São daqueles que tem piada rápida, sabe? Eu sou o chato e sério. É deles que eu tiro algumas coisas para as tiras, algumas vezes. Não pago para ninguém. Eles não sabem o que são copyrights.
As meninas te dão mais atenção na escola porque você publica na Folha?
Elas nem sabem o que é a Folha de S.Paulo! Tem o garoto que joga futebol bem, o nerd, eu sou o garoto que desenha bem. Ninguém entende as charges. Talvez as tirinhas até entendam, mas ninguém liga que eu faço para a Folha. Não é importante, ninguém lê jornal. A maioria da minha sala vai em matinê, ficar dez horas no computador, conversando pelo Twitter. O pessoal, sabe, gosta do estilo. Ninguém diz: “Pô, João, sua charge estava incrível, que bela crítica você fez”. Talvez um professor meu.
Fora o desenho, o que você gosta de fazer?
Tocar guitarra. Toco faz uns dois anos. Não sou daqueles que idolatram o Slash. Depois do Guitar Hero 3... A gente está falando muito de videogame! Depois do Guitar Hero 3, todo mundo se inspira no Slash. Eu só me espelho em gente mais antiga. Já ouviu Allman Brothers?
Já.
Duane Allman é o meu maior. Tirando o Jimi Hendrix, porque não dá para competir com ele. Estou tentando aprender slide. Eu coloco na caixa [de som], meu pai não deixa eu tocar, tô pegando só no violão.
Que músicas dos Allman Brothers você sabe tocar?
“Whipping post” e “The memory of Elizabeth Reed”. É mais legal porque você pode pegar a [escala] pentatônica e ficar improvisando, que nem eles faziam. Aqueles solos de 15 minutos que só eu consigo ouvir. Quando eu ponho no rádio, meu pai pede para tirar. Gosto da música mais pelo solo, pela guitarra. Acabou ouvindo mais White Stripes, Allman Brothers, Robert Johnson. De AC/DC já não gosto mais é sempre igual! Eu gostava pra caramba, até comprei uma [guitarra modelo] SG por causa do Angus Young. Mas agora tô indo pra Stratocaster, que é bem melhor.
Que pessoas você teve a chance de conhecer e nunca tinha achado que conheceria?
O cara que faz as bandejas do McDonald's, o Hiro Kawahara. Aquele cara é um monstro! A gente vê o trabalho dele e nem conhece. Aquela vaquinha do pote de Leite Ninho foi ele quem fez. Nunca imaginei que ia conhecer. Ele tem um blog e escreveu sobre mim. Mandei um e-mail agradecendo, ele foi no lançamento [de seu livro]. Já conheci o Jean, Orlando Pedroso, o Ota, editor da Mad. Já conheci uma boa parte dos meus ídolos. Mas como uns já morreram, fica difícil.
Quais já morreram?
Henfil, esse cara aqui [aponta para o livro de Jim Flora]. Ah, já conheci também o Liniers! Ele me deu isso aqui [mostra um livro autografado com dedicatória do cartunista argentino]. Ele desenhou a capa. Ele imprimiu cinco mil e a capa era em branco. Ele veio ao Brasil para lançar o Macanudo um e eu dei uma tirinha para ele. Ele tirou o livro da mala, começou a assinar e me deu. [Pensativo] Eu já conheci meus ídolos.
Como é conhecer os ídolos, ver que eles são pessoas reais?
Por exemplo, eu pensava que o Laerte era maluco. Depois que ele começou a fazer aquelas tirinhas filosóficas, achei que ele ficava pelado dançando para fazer a tira. Ele é um cara super-engraçado, legal. O Hiro também. Na verdade, dele eu não sabia nada, só nome [rindo]. Gosto de saber como o cara faz o desenho, o bastidor. Uma vez eu fui na casa do Laerte para uma entrevista. Falei: “Posso ir ao banheiro?”. Subi lá, nem fui no banheiro, comecei a olhar a casa. Olhei para o estúdio, maravilhado.
De onde vem as suas ideias?
Sei lá de onde. Da cabeça [rindo]. Eu tenho um caderninho. Vou desenhando sem parar. Às vezes eu penso em um tema [mostra um caderno pequeno cheio de desenhos]. Penso no tema, faço o quadradinho e ninguém entende o que está escrito, só eu. É só para lembrar. Eu tenho ideias à noite, então pego [o caderno] dormindo quase, desenho, para de manhã lembrar qual era a ideia. Já tive uma baita ideia e esqueci no dia seguinte.
Você quer seguir na profissão de cartunista?
Vou continuar, já gastei tanto [rindo]. Aquarela é caro! Eu gosto, para mim, desenhar é compulsivo. Não vai dar para parar agora que eu sei desenhar. Tô na escola, não paro de desenhar. Todos os meus cadernos são desenhados [abre um caderno espiral e mostra desenhos entre a matéria anotada].
"O Laerte uma vez me disse que eu já sintonizei no canal de velho. Mas eu quero comprar um videogame."
Atrapalha na hora de prestar atenção na aula?
Não. Minha mão faz, não eu. Na maioria das vezes nem é quando o professor está explicando, é na hora do exercício ou quando não tem nada para fazer.
Tem alguma coisa que você sonha em fazer quando ficar mais velho?
Uma história de 300 páginas. Cachalote, Scott Pilgrim, gastar dois anos da minha vida nisso [rindo]. Deve ser divertido. Ou aprender a tocar slide. Ter uma banda que só toca em barzinho.
Você já pensa na faculdade?
[Pensativo] Artes plásticas você sai mais filósofo do que artista. Meu tio fez artes plásticas e filosofia. Já me disseram que a publicidade morreu, então não dá para seguir nela. Sei lá, jornalismo, mas agora não tem esse negócio de diploma. Tá ruim, né?
Quem é a pessoa que você mais admira?
Meu pai. Todo mundo fala isso. Mas, pô, o cara me levava às nove da noite para voltar à uma no prêmio HQMix, para eu voltar falando: “Olha, pai, eu toquei na mão do Angeli”. Pegava minhas tiras e falava que estavam ruins na minha cara. Ele é meu maior fã e maior crítico. Às vezes diz que as tiras estão medíocres. Digo: “Não, não está medíocre!”. “Está sim”. Às vezes ele está certo, às vezes está errado. Mas é ele quem vê as charges, ele comprou meu material, gastou uma grana. Foi quem mais me ajudou. Ou o Duane Allman.
Site: http://porjoao.blogspot.com