Um guardador de carros, encostado num muro. Uma morena bonita, passando pela rua. “Gostosa”, diz o guardador, naquele tom ao mesmo tempo elogioso e escroto, que qualquer brasileiro conhece. “Gostosa para Jesus”, responde rápida a gostosa, evangélica, ofendida, decotada. Silêncio, breve. E o guardador pondera: “É, sem dúvida, pra Jesus também”.
Eu vivi essa cena, como figurante, enquanto caminhava hoje à tarde por uma travessa da avenida Faria Lima, aqui em São Paulo. Os seis segundos do diálogo e do gestual estavam sobrecarregados de Brasil. Eles acenderam em mim dois lampejos fulminantes de compreensão. Primeiro, eu entendi que havia participado da encenação espontânea de um mito, um mito pedestre, que o poeta definiu como “o quase nada que é quase tudo”. Depois, eu entendi quase tudo. Com a fagulha daquele instante, a máquina da nação se entreabriu para os meus sentidos. Eu vi, senti as entranhas dela. De nós. E a pátria, uma vez na vida, fez algum sentido. Pena que o sentido tenha durado só três respirações. Ele me sumiu de súbito, como se eu tivesse sido desperto de um sonho remoto pelo bafo carbônico da rua, logo que dobrei a esquina. Mas deixa eu tentar lembrar. Um lado meu, que é quase um Diogo Mainardi de tão chato, admito, viu só indícios de treva, de metástase social. Viu a boçalidade do guardador, essa praga rastaqüera da fauna urbana brasileira, que vende do lado de cá do apartheid social uma proteção barata contra si próprio. E viu também o outro lado da mesma moeda corrompida que gera o guardador: o carolismo da neo-Iracema catequizada, através de quem Jesus parece se transformar no exato oposto do que se propôs a ser – uma obsessão escravizante e alienadora.
Por sorte, eu também tenho um lado quase que Dorival Caymmi. Ele viveu a cena de um modo completamente diferente. Viu só uma morena linda, de valores cristãos tão saudáveis quanto as próprias pernas, viu só um maracujazinho incorruptível exalando o ar da graça pelas ruas poluídas da cidade, fruta cotidiana da paixão, beata redentora, gostosa de Jesus. E viu no guardador um homem gaiato, de bem, ganhando a vida como pode, senhor de uma linguagem corporal liberta, brincando com a realidade sem perder o rebolado, em paz com o mundo e alheio à miséria – tanto a dele quanto a do mundo.
Gols das rodadas: futebol & CPIs
Agora é tarde da noite. Enquanto olho aqui para o computador, a televisão sintonizada na Globonews mostra os gols da rodada. Da rodada de jogos de futebol e da rodada de CPIs. E projeta-se óbvio na tela da minha mente sonolenta o fato de que existe uma relação umbilical entre o Brasil da TV e a verdade transeunte que me escorreu pelo bueiro da rua, há poucas horas, indo talvez parar num encontro improvável entre os rios do pensamento do Diogo Mainardi e do Dorival Caymmi.
Essa relação entre Brasis, ao contrário do próprio mito de esquina, é lembrável, traduzível, racionalizável. Mas tem só uma coisa em que meus lados Mainardi e Caymmi concordam (um por achar frescura e o outro por ver a vida com eterno frescor): não vale mais a pena teorizar sobre brasileirismos. É hora de ação, simples.
Como todo mundo, eu tenho uma multidão de outros lados. Alguns até gostariam de escrever uma tese subsociológica sobre o que foi há pouco visto e sentido na rua. Felizmente eles já foram dormir. O que sobrou de mim, colunista que sempre suspeitou da própria necessidade mensal de produzir uma opinião, também quer ir para a cama. E acordar amanhã. Sair para a rua com a mente aberta para o quase nada. Viajar. Querendo achar o mundo gostoso, e gostoso para Jesus.
London, Luton Airport. CrÉditO: Charles Skilton & Fry Ltd / saiba mais na acp desta edição
*Carlos Nader, 41, videoartista, tem o olhar treinado para encontrar grandes questões sociológicas em cenas corriqueiras como a acima. Seu e-mail é: carlos_nader@hotmail.com
