Fred D’Orey

O surfista estilista ataca a política, a elite, a moda e diz: 'O país não vai dar certo'

por Giuliano Cedroni em

Muitos sonham. Alguns falam. Poucos realizam. Fred d’Orey pertence a essa última categoria. Nascido de mãe sueca e pai carioca, Fred teve o privilégio de descobrir muito jovem que seu talento maior se encontrava na fina arte de caminhar sobre as ondas. E que, para isso, precisaria conviver com aquela faixa de terra onde o chão deixa de ser firme, onde o sol é adorado, onde os corpos podem desfilar quase nus e, sobretudo, onde todo brasileiro sonha estar – a praia.

Frederico Guilherme Kumlin d’Orey é fruto da união entre uma decoradora de família de diplomatas europeus e um pai que pilotava carros de Fórmula 1. Nasceu no Rio de Janeiro em 1962, quando a cidade materializava a maneira bossa-nova de viver. Mas o garoto não tirava os olhos da água. Nativo do Arpoador, costumava passar horas de olho na faixa conhecida como line up, onde as ondas quebram. E foi nessa vigília incansável que o garoto testemunhou a chegada do movimento hippie ao Brasil, a descoberta da maconha como droga social, a revolução comportamental em torno do Píer de Ipanema, a consagração do biquíni brasileiro, Petit, Rico, Bocão, a família Gracie. Sem saber, Fred testemunhava o surgimento da cultura de praia no Brasil.

Conheci Fred no line up do Inside Corner, onda perigosa que varre a bancada de Uluwatu durante a maré baixa. Era a Bali de 1993, pré-conflitos de Jacarta, pré-bombas em Kuta, pré-tsunami. Eu vivia o sonho de quase todo surfista de minha geração; morava na casa de uma família balinesa sem luz, sem internet, sem celular, mas com três pranchas na parede. Enquanto eu brincava de Gerry Lopez, Fred cortava a ilha de um lado a outro equilibrando a exportação de produtos balineses num pé, e a maré certa para surfar no outro. O cara surfava o Corner como poucos e, sem saber, costurava as barras do que seria a Totem.
Criada há 15 anos, a grife possui duas fábricas (uma no Rio, uma em Bali), que somam 200 funcionários, e 11 lojas próprias, além de distribuir suas peças em centenas de pontos de venda no Brasil e mais 11 países. Fred dirige toda a parte criativa, desde a aprovação dos desenhos das roupas até a criação da bem editada newsletter, passando pelo garimpo das músicas que enchem os podcasts no site da grife e a direção dos catálogos. Num deles, aliás, Fred serviu como modelo, noutro fotografou toda a coleção, o que gerou comentários ácidos do mercado sobre sua personalidade egocentrada. “Depois disso, a tabela de preços dos fotógrafos despencou”, diverte-se em seu apartamento em Ipanema, onde recebeu a Trip para uma longa conversa. Nela, Fred se mostra indignado com o país. “Adorava o [Paulo] Francis e hoje adoro o [Diogo] Mainardi e o [Arnaldo] Jabor. Eles estão certos, os políticos brasileiros devem ser todos presos!” Essa vertente polêmica alimenta uma fama de encrenqueiro no universo do surf, fama esta que começa a invadir a praia do mundinho fashion: “Não tenho saco pra fofoquinha do mundo da moda, acho tudo um saco!”.
O fato é que Fred faz. Ele é daqueles que já viveram várias vidas em uma e aposentar-se não desponta em seu horizonte. Já foi campeão brasileiro de surf e o mais bem pago atleta das ondas do país; já teve o próprio jornal e editou revista dos outros; já viveu em Garopaba, em Florianópolis e atualmente mira a Austrália. Como se não bastasse a Totem e a coluna mensal que mantém na revista Fluir (e que gerou o livro Outras ondas, recém-lançado pela editora Gaia), ele ainda arranja tempo para produzir uma mostra de cinema pop, com foco em música e comportamento. Num episódio surpreendente, juntou quase mil pessoas em Ipanema para protestar contra a violência após ser assaltado quando voltava do aeroporto numa de suas inúmeras viagens pelo mundo.
Um dia, já de volta ao Brasil, meus amigos de praia me telefonaram dizendo que Fred dedicara um artigo sobre meus dias de Uluwatu. Falava de surf, liberdade, desprendimento, superestimando um estilo de vida que eu nem sabia que levava. Quinze anos depois, é hora de inverter os papéis. A seguir um retrato dividido em páginas de alguém que conseguiu moldar sua vida através do surf sem cair no clichê do rato de praia e do surfista maconheiro. Afinal, quem disse que na praia só tem vagabundo?
Você viveu a praia carioca desde o fim dos anos 60 e durante toda a década de 70, num período em que aquela faixa de areia era mágica. Muita coisa aconteceu ali, seja na música, no surf, na moda, no comportamento, nas drogas. Como foi ver essa cena de camarote? Acho que a geração de surfistas do início da década de 70 no Brasil é parecida com a do fim da década de 50 na Califórnia. Foi a galera que chegou à praia e falou: “Porra, mas isso aqui é o melhor lugar do mundo. Não quero mais sair daqui! Como é que eu faço?”. Então tiveram que inventar um esporte e quebraram a cara pra isso. Teve uma geração antes da minha que correu os maiores riscos de abrir mão do emprego público ou do emprego na empresa do pai, de deixar de estudar, de crescer o cabelo. Eu era mais moleque, queria mesmo era surfar.

Que tipo de criança você era? Bem tímido. Depois que minha mãe foi embora, eu fiquei muito quieto, sofrendo aquilo. Na verdade comecei a perceber isso só depois que fui pai e as coisas começaram a voltar em flashback. E o surf me ajudou muito, me deu segurança pra me libertar e conquistar um espaço dentro do grupo, comecei a ser admirado pelo talento de pegar onda.

Quando teve o primeiro contato com o surf? Bem cedo, na praia de Pitangueiras, no Guarujá. Fiquei louco ao ver os caras pegando onda pela primeira vez. Aí comecei a pegar onda com 7, 8 anos de idade.

No isopor? Prancha de isopor, mas a gente fazia as mesmas coisas que os caras de [prancha de] fibra faziam, as mesmas manobras. Era engraçado.

Você viveu aquela cena do Píer de Ipanema, nos anos 70? Não, porque meu pai não deixava eu ir ao Píer, era lugar de maconheiro, de cabeludo. Ali ficavam o Pepê, o Rico, o Bocão, caras mais velhos do que eu, que era o garotinho que ficava olhando de longe, meio assustado com aquilo tudo, mas ao mesmo tempo fascinado. Queria fazer parte daquilo um dia.

E, em cima daquela contracultura toda, muito surf? Eu surfava todo dia, cara. Chegava a surfar até antes do colégio, e o ônibus escolar passava pra me pegar às sete da manhã! No surf eu realmente me encontrei. Falo pro meu filho: “Pô, Martin, não interessa se você não gosta de surf, não tem problema, mas você tem que encontrar alguma coisa de que goste, e então tudo vai conspirar a teu favor”.

Ele pega onda? Ele aprendeu a pegar onda, mas começou a faltar na aula de surf, e um belo dia eu vi que ele não tava mais a fim. Então a gente conversou. Eu disse: “Martin, acho que você não gosta de pegar onda e você não precisa pegar onda. Eu gosto de você igual, cara, não vai mudar nada entre a gente.”.

Rolou pressão da sua parte para que ele fosse surfista? Isso é comum. Eu aspirava que ele fosse surfista muito pela oportunidade de conviver mais com ele, de viajar junto. Porra, viajei o mundo por causa do surf, e se ele pega onda a gente vai fazer várias viagens juntos. Se ele não pega, vou ter que fazer as minhas viagens e vou ter que encontrar tempo pra fazer as viagens com ele também. Então a gente vai perder tempo junto. Mas quando eu fui conversar com ele a gente se aproximou mais, porque ele se emocionou com aquilo, tirou um peso das costas, começou a escorrer lágrimas dos olhos dele, tipo “que bom que eu não preciso mais”.

Quando você começou a surfar profissionalmente? Começou a rolar um campeonato, outro, e comecei a me dar bem. Aí vieram os patrocínios, as viagens, e eu não sabia quanto tempo ia durar essa história, estava buscando. Fiz estágio em agência de publicidade, fiz estágio com o Walter Salles, depois na Globo. Eu pensava: “Como é que eu vou fazer pra ganhar dinheiro? Tô ficando cada vez mais velho, já com 19 anos!” [risos].

Você fez comunicação na PUC-RJ. Se formou? Fiz, mas abandonei antes de me formar.

O diploma fez falta em algum momento na vida? Nunca, so far so good.

Em nenhum momento você pensou em seguir a carreira? Cara, as coisas foram acontecendo. De 85 a 87 eu ganhava muito, cheguei a fazer uma casa em Garopaba com dinheiro de surf. Eu já fui o surfista mais bem pago do Brasil. Aí comecei a editar um jornal, o Staff, e foi um tremendo sucesso. Eu era surfista profissional, superbem pago, estudava na PUC e editava um jornal mensal, colorido, que vendia em banca. Quando vi, eu estava tomando conta de 20 funcionários, aos 23 anos de idade, e sem ter a menor noção de como ser empresário, editor, nada, só usando bom senso e sendo responsável.

Quanto tempo durou o Staff? Quatro anos.

Faliu? Não, eu acabei o jornal. No dia que ganhei o Campeonato Brasileiro de Saquarema, em 87, dia do meu aniversário, chamei o [surfista] Rosaldo [Cavalcanti] e a Verônica [d’Orey, sua irmã] e disse que queria parar. Eu estava exausto. Os outros surfistas iam pra competir e pra balada, já eu tinha que arranjar fotógrafo, entrevistar os caras, escrever a matéria, e era o cara que menos aparecia no meu jornal. Eu tinha ética, não podia aparecer, só quando eu ganhava campeonato, e também não aparecia nas outras revistas porque me consideravam concorrente. Foda.

E como veio o convite para escrever na Fluir? A Fluir começou logo depois que terminei o Staff. O Romeu [Andreatta, hoje editor da Alma Surf] me procurou e me chamou pra colaborar. Logo ele me convidou pra ser editor contribuinte e, em menos de um ano, eu era o editor geral da revista.

E você tinha referencial para editar uma revista? Meu referencial sempre foi revista de música e comportamento. Eu viajava e comprava muita revista de fora, então via o que se precisava fazer num veículo. Criei várias seções fixas como Line Up, que era de entrevista; Beach Beat, de música; Resgate.

Você é um dos caras que conheço que mais viaja. De onde vem essa fome de cair tanto na estrada?  Eu sempre fui muito curioso e muito interessado. Então se vou viajar para um lugar procuro descobrir antes quem é o autor mais importante daquele país, compro um livro do cara, já leio antes, pesquiso para entender um pouco.

Você costuma viajar sozinho? Já viajei muito sozinho. Detesto viajar em grupo, como detesto sentar em mesa em grupo também, aquele festival de amenidades. Meu negócio é conversar de verdade, eu quero saber o que tá acontecendo na tua vida sem ficar de ventilador de repartição, mulher pra cá, mulher pra lá, “olha quem entrou, quem saiu”. Acho um saco isso, gosto de focar.

Quantos países você já visitou? Trinta e seis.

Algum te marcou em especial? A Indonésia, por tudo que ainda consegue ser.

As viagens te amadureceram? Muito.

Acha possível alguém ter esse tipo de experiência através de outras fontes, dos livros por exemplo? Quando criança eu tinha um espelho escrito assim: “O mundo é um livro, você que não sai de casa leu apenas uma página”. A pessoa que viaja fica mais interessante, ela viu mais coisas, aprendeu com os diferentes, é por isso que acho o localismo a coisa mais estúpida do universo. Como assim, o cara não tem curiosidade de ver o que está acontecendo ali do lado?

O que mais te incomoda nas viagens? O americano me incomoda, a frieza deles.

Qual a diferença entre um viajante e um turista? O turista é aquele que vai no pacote, que tem medo de interagir, de sair na rua, do inesperado e do improvisado. Tenho amigos que vão pra Bali, ficam em hotel cinco estrelas e a cada noite jantam num restaurante diferente do hotel.

Você já foi preso? Por algumas horas, em Florianópolis, em 88, num show do Eric Clapton. O policial me agrediu, eu reclamei e ele plantou um flagrante. Coisa de cinema, eu não acreditei.

Como é a sua relação com drogas? Muito devagar, não rende um capítulo.

Já experimentou alguma? Maconha, e fui o último da turma a experimentar. Nunca cheirei.

Você é a favor da descriminação das drogas? Só da maconha.

Não acha que a maconha, a longo prazo, pode também causar efeitos negativos numa pessoa? Se o cara está propenso a isso, pode ser maconha ou outra coisa qualquer. As pessoas precisam de alguma válvula de escape qualquer, senão enlouquecem.

Qual é a tua válvula de escape? Dançar e pegar onda.

Dançar? Adoro sair pra dançar. Mas é pra dançar mesmo, música eletrônica.

Como surgiu a Totem? Eu estava embaixo de uma barraca de praia na Guarda do Embaú [SC], anos 90, olhei em volta e vi os caras todos de calção preto e cinza, e as meninas de shortinho jeans, enroladas numas cangas feias. Pensei: “Pô, neguinho tá no lugar mais lindo do mundo, as pessoas são lindas, a música é agradável, a comida é bacana e estão se vestindo como se estivessem num velório? Cadê a moda balneário interessante, bacana? A surfwear não está atendendo, hoje faz roupa pra office boy.”. Então criei a Totem.

O que é elegância, na sua opinião? Elegante é andar de sandália, de bermuda, de camiseta ou de camisa de botão, mas de acordo com o entorno. Vivemos num país de calor senegalês e neguinho acha que está em Paris e Londres. Nós temos que celebrar a vida, não de preto, não de couro, mas com estampas bonitas. É um trabalho que a gente vem fazendo, nós e outras pessoas, de nacionalizar a moda, tropicalizar a moda.

O brasileiro se veste bem? Minha empregada se veste mal, a elite se veste mal. A verdade é que só meia dúzia se veste bem, de acordo com a nossa temperatura.

Em que pé está a Totem hoje?  A Totem já vende pro mundo inteiro, através de nossos distribuidores. Fora isso, temos dez lojas no Rio e vamos abrir uma em São Paulo ainda este ano.

Na “pior cidade da América do Sul” (d’Orey já escreveu que São Paulo é a pior cidade do hemisfério)? [Risos] A mais rica. E estou em processo de tirar a residência na Austrália, pois quero ter uma cadeia de lojas da Totem lá.

Por que Austrália? Eu acredito muito na Austrália, quero que meu filho vá de bicicleta pra escola, quero andar livremente na rua, não quero ser assaltado.

Você gosta da cena fashion, dos bastidores dos desfiles? Não. Eu não gosto, mas acho que é importante pra marca. Esse negócio de ser centro das atenções, de ser celebridade, eu acho a maior pentelhação da paróquia.

Na pesquisa para esta entrevista, topei com uma foto sua na Caras por conta de um evento de moda de praia. Você não acha que agora que a Totem está crescendo pode ser sugado para esse universo de celebridades, como aconteceu com outros estilistas?  Cara, eu acho que sou muito bicho do mato pra isso. Eu não frequento salões, não namoro celebridades, não conheço nenhum ator global, não vou à praia da moda, não vou ao bar da moda. Acho maior saco, em geral são pessoas chatas, vazias, não é a minha turma.

Qual é a sua turma? Gosto de cinema, sou rato de livraria, sou colecionador de vinil, tenho uma biblioteca de rock’n’roll e de surf. Se não tiver dando onda, programa ideal pra mim é ficar em casa lendo ou com meu filho. Sou muito caseiro.

Que acha de marcas como Osklen, Forum, Ellus e Richards? Sou fã da Osklen e da Richards.

Você já foi surfista profissional, editor profissional e hoje empresário. Acredita que vai trabalhar com moda pra sempre? Acho que a última coisa que vou fazer na minha vida vai ser trabalhar com música.

Você toca alguma coisa? Não.

Você é DJ? Hoje todo mundo é DJ. Não, eu gosto de música pra mim. Uma vez fiz um programa de rádio em Floripa que fez um puta sucesso. Fazer uma rádio seria demais!

 

Aquela pergunta cafona e inevitável: se você fosse pra uma ilha e tivesse que levar cinco álbuns apenas, quais seriam? [Suspiro] Ah, eu levaria Astral Weeks, do Van Morrison, Pink Moon, do Nick Drake, On the Beach, do Neil Young, Simple Things, do Zero 7, e The Jazz Side of Fela, do Fela Kuti.

Nada de música nacional? Não sou apaixonado por música nacional, mas gosto do Caetano Veloso, acho ele um gênio, assim como Junio Barreto, Marisa Monte.

E a sua ligação com a escrita, como se deu? Meu pai sempre leu muito, teve muito livro em casa, e sempre gostei de ler, dois ou três livros ao mesmo tempo, revista. Hoje passei esse hábito para meu filho, a gente lê juntos aqui em casa.

Como foi sua passagem por Floripa? Fui morar em Florianópolis achando que podia ser o Rio de antigamente e cheguei à conclusão de que nunca vai ser o Rio, porque não adianta só ter cidade e praia, o Rio foi uma capital, outra cabeça.

É uma cidade provinciana? Muito. É uma cidade que não gosta de pessoas de fora, então você tem os defeitos de uma pequena cidade sem as qualidades de uma grande cidade.

Quantos anos você ficou lá? Quatro anos, fazia de tudo. Colaborava com a Fluir, tinha um programa de rádio, fiz a primeira escola de surf da ilha, era assessor de imprensa da Federação Catarinense de Surf.

Você tem fama de ser uma figura polêmica, algo raro no eixo surf-moda-Bali. De onde vem essa sua vertente? É de tanto produzir riqueza e pagar imposto pros caras saquearem! [Risos] A minha vida vai muito bem, eu não tenho nada do que reclamar. Viajo muito, sou próspero, mas não pode estar bem só pra mim. Acho que estamos numa decadência absurda, cara, por isso a fama de encrenqueiro.

Você tem convicções políticas? Não acredito em esquerda nem em direita, acredito em competência, ética e seriedade, coisas que faltam no Brasil. Meu filho foi assaltado duas vezes e tem só 14 anos. A situação é catastrófica. Eu acho que o Brasil não vai dar certo, por isso me vejo morando fora daqui a alguns anos.

Isso não gera um sentimento de derrota, de abandono? Não estou abandonando meu plano, não acho que sou de país nenhum, eu sou de família de diplomatas, viajei pra caramba. Quando eu estava morando e brigando por Florianópolis, falando de ecologia, não me senti um carioca invadindo aquela ilha, eu me senti um cidadão preocupado com o entorno. Se eu for morar fora do Brasil, vou me manifestar ali também. Eu sou deste planeta.

Mas há no Brasil de Lula uma sensação de que as coisas estariam melhorando. Quer fazer o teste? Você está em Ipanema, dá uma volta no meu quarteirão agora. Noventa por cento de chance de que você vai ser assaltado. Não tá melhorando porque a elite brasileira é podre.

Você escreve muito sobre a decadência da elite em suas colunas, mas também faz parte dela, não? Acho que sim, mas eu nunca pude pensar o país, entende? As pessoas que detinham o poder pensaram só nelas, “não vamos educar, não vamos distribuir riqueza, não vamos democratizar o conhecimento.”. Tudo do pior, do pior. Fala sério! Os caras deviam ser obrigados a botar os filhos nas escolas públicas e se tratar nos hospitais públicos!

Como foi o episódio em que você foi pegar onda no Quebra-Mar, no Rio, e levou uns policiais? Não levei os policiais, eu escrevi que levei, mas eles já estavam lá. Neguinho fechou o pico e durante dez anos ninguém mais surfava ali além dos locais. Os caras batem em muita gente, quebram o vidro do carro, furam pneus, são bandidos, cara, são bandidos. Eu sou um cidadão, eu pago imposto, eu trabalho pra caramba, e eu fui surfar lá. Os caras me ameaçaram, e eu disse: “Eu tenho todo o direito de frequentar esta praia e se você me encostar a mão eu te boto em cana”. Ele não tava preparado pra essa resposta. Quando escrevi sobre isso na Fluir eles quebraram os vidros do meu escritório. Três vezes. Aí as pessoas vinham: “Parabéns, eu tava com esse negócio entalado”. “Tá com o negócio entalado?”, eu dizia, “então vamos surfar no Quebra-Mar todo domingo, aí acaba o localismo”, mas isso ninguém quis fazer. Depois descobri que a própria polícia protegia os locais.

Ninguém se mobilizou para acabar com isso? O brasileiro só se mobiliza pra Carnaval e Copa do Mundo, são os patridiotas.

E como está o Quebra-Mar hoje? Fechado, eu fui o único que caiu lá em anos.

Por isso morar fora. Não vai sobrar nada aqui. A gente faz as maiores idiotices com as nossas cidades, nossas praias. A gente cuida bem pra caramba dos nossos filhos, mas é incapaz de cuidar bem dos filhos dos outros. As crianças moram na rua, e os caras roubam merenda escolar, roubam sangue, roubam tudo, cara. Como é que pode? A grande questão do Brasil é corrupção, se você interromper o ciclo da corrupção vai sobrar dinheiro pra todos os projetos.

E o episódio do assalto na Linha Vermelha? Minha namorada foi me buscar no aeroporto depois de uma viagem pra Libéria, um dos lugares mais perigosos do mundo. No caminho de volta uns garotos de fuzil apontaram a arma pra nossa cara no meio da Linha Vermelha. Eu parei, a gente desceu e eles levaram tudo: carro, pranchas, bagagem, câmeras, tecidos, carteira, tudo. Ficamos horas com policiais despreparados e nada. Cheguei em casa e escrevi um e-mail indignado para 27 amigos. Eles repassaram para outros amigos, que repassaram para outros, até que a imprensa publicou; saiu no Globo, em blogs e tal. Aí me cobraram alguma ação: “Pô, você tem que fazer alguma coisa, faz alguma coisa!”. E eu não sabia o que fazer, não sou político. Mas acabamos armando um encontro em Ipanema, no dia 7 de setembro, fiz camiseta “Corrupção Zero”, e apareceram quase mil pessoas. Aí me colocaram um megafone na mão e eu realmente não sabia o que fazer, só queria mostrar minha indignação, minha revolta.

Hoje, três anos depois, como é que você analisa esse episódio? Eu concluo que nada vai dar em nada. Neguinho gasta dinheiro em mordomo, em carro blindado, em casa nos Alpes, e não quer dar um sorvete pro filho da empregada! Acho que vem de sermos um país escravocrata.

Joaquim Nabuco escreveu que nunca vamos nos libertar disso. Exato! Escravocrata! Tudo muito egoísta, essas pessoas matam mais do que o bandido. A classe política é assassina.

Por outro lado, quase ninguém “do bem” se mete a entrar na política ortodoxa, no máximo criam ONGs, algo bacana mas pífio ante o poder do Estado. Nunca passou pela sua cabeça entrar no mundo político para tentar mudar algo? Eu acho que se eu entro pra política os caras me matam. Não quero ser político.

Você votou no Gabeira pra prefeito? Gabeira sempre.

E no Lula? Nunca.

A Totem tem algum trabalho social voltado pra comunidade? A Totem é pequena, não ganha tanto dinheiro assim. 

Irônico pensar que mesmo com tanta indignação você construiu sua vida em torno de um universo que muita gente considera alienado e comodista, como o do surf. Não acho que isso seja uma coisa exclusiva do surfista. O automobilismo é assim também, o tênis é assim. As pessoas não se interessam, a juventude é limitada e acomodada. A verdade é que 90% da população é meio medíocre, meio fraquinha mesmo.

E o cenário da moda, você acha leviano também? Cara, aquilo não me toca. Eu trabalho com moda, mas tô pouco me lixando pro universo da moda, pra fofoca, pros blogs.

Ter um discurso como o seu e viver da indústria do consumo não pode ser um pouco contraditório? Eu não estou na banheira de espuma na Ilha de Caras, apenas fui fotografado num evento, entendeu? Olha, eu sou fundamental para um número enorme de pessoas sobreviverem. Comecei do zero sem nenhum funcionário, depois contratei pessoas que iam de bicicleta para o trabalho, depois elas compraram uma moto, depois um carro. Sempre fui muito crítico dessas marcas de luxo. Cara, quanto pode custar uma bolsa, uma camisa? Eu nunca poderia namorar uma pessoa que sai com uma bolsa Louis Vuitton.

A Totem não pode vir a ter esse status um dia? Não, esse é o lado feio da moda e que se deve à nossa falta de educação, porque você tem que ter a capacidade de gostar daquilo porque é belo, porque te seduz, e não porque tem uma assinatura ou porque aquilo vai fazer com que você esteja num patamar “acima” do outro. Tanto é que na Totem nunca usei o logo rasgado, grande. Sempre quis que as pessoas consumissem a minha coleção porque elas achavam aquilo bonito. Tô pouco me lixando se aquilo “tá na moda ou fora de moda”!

De onde vem sua educação de moda? Vem do meu olhar.

Você chegou a estudar? Não. Eu fui fazendo, aprendendo. Não ganhei uma empresa do meu pai, comecei fazendo short de algodão estampado pra Richards.

Na época que a gente se conheceu em Bali, você já trazia roupas de lá?
Ali eu já desenhava as estampas e produzia lá, chegava aqui com a coleção pronta.

Você é um esteta, sempre foi atento ao estilo, seja no surf, nas estampas da Totem, nos textos, nos podcasts do seu site. De onde vem isso? Minha mãe é decoradora e acho que de tanto ver, observar, circular, de ela dizer “isso é bacana, isso não é” e de viver ali naqueles ambientes de museus, sempre muito em cima da coisa da cultura, da educação e não da ostentação. Acho que fui assimilando.

Como você define sucesso? Sucesso é ser feliz e às vezes um taxista é feliz. Ele tem sucesso, na minha opinião.

Você é feliz? Muito.

Tem alguma grande frustração? Não.

Você recebe bem um “não”? Hoje em dia eu recebo.

Quais são os seus maiores defeitos? Falar tudo o que penso.

Você tem algum vício? Música. e surf.

Já te chamaram de egocêntrico. Confere? Talvez.

Acredita que a experiência, a idade, te melhorou? Muito. Eu já fui muito mais difícil, muito mais intolerante e dono da verdade. Aí levei algumas porradas, como todo mundo. Eu falo isso pro meu filho o tempo todo: “Não fica achando que essa bolha aqui é o mundo. Lá fora os caras não vão ficar se preocupando com você, vão te meter a porrada.”.

Você está com 46 e foi casado uma só vez, por sete anos. Não acredita no “formatão casamento”, com casa, cachorro e cama junto todo dia? Eu acho que não. As relações têm um prazo de validade, infelizmente elas acabam e as pessoas se acostumam umas com as outras, optam por apagar aquele fogo em nome da relação da família. Mantêm uma coisa, mas perdem outra. Isso foi inventado pra sociedade se organizar, pra você ter propriedade privada, pra tudo funcionar e tal. Agora, eu não acho que seja do instinto humano macho e fêmea ficarem pro resto da vida junto.

Você namora há quanto tempo? Namoro há um ano e meio. Uma juíza. Ela sofre. [risos].

Por quê? Porque o nó do Brasil é a Justiça, né? Porra, os caras tinham que estar todos atrás das grades há muito tempo, e a Justiça não cumpre com esse papel. Então ela escuta.

Tem medo da solidão? Não. Eu tenho tantos interesses, livros, música, filmes, tô sempre fazendo alguma coisa, apesar de adorar não fazer nada também. E com a internet, agora, ninguém mais fica sozinho.

E a velhice, te assusta? Um pouco.

O que mais te assusta nela? Apesar de eu nunca ter torcido um tornozelo, não fazer nenhum tipo de alongamento ou aquecimento, meu corpo já não é o mesmo. E fico tentando imaginar como vai ser minha vida quando eu perder o interesse pelo surf. “Será que, quando eu começar a pegar mal, vou ter menos tesão de pegar onda?” Porque eu gosto de pegar onda, porque eu vou lá e pego.

 

Eu sei, lembro de você surfando no inside corner com pranchinha de moleque. Já viveu alguma situação em que achou que ia morrer? No assalto da Linha Vermelha isso passou pela minha cabeça.

E no surf? Já senti que passei perto, caldos muito longos, de perder as forças e me desequilibrar psicologicamente.

Quais foram suas maiores ondas? Sunset na década de 80 com 12 pés e Uluwatu Outside Corner, maior swell de todos os tempos, também 12 pés, em 2007.

Que acha desse endeusamento dos big riders? Acho os caras corajosos. Ganham uma merreca e surfam em condições extremas, mas não é a minha, gosto de esquerdas perfeitas, tubulares e rasas, com água quente. E acho chato neguinho pensar que surf de onda grande é que é surf. Não tenho paciência pra isso.

Você já fez terapia? Já. Freudiana.

Recomenda? Muito. Qualquer coisa que faça com que você tenha um tempo só pra você.

Já sofreu de depressão? Não. Nunca tive dor de cabeça.

Fala sério. Nunca. Por quê? Você tem dor de cabeça?

De cabeça e de outras coisas. O que mais te estressa?  A falta de educação do brasileiro.

E o que te deixa feliz? Criança. Adoro criança.

Você pensa em ter mais filhos? Só se for na Austrália. No Brasil, não.

Do que você mais gosta no Brasil? O povo é foda. É como o africano, eles são maravilhosos, por isso que neguinho sacaneia tanto eles. O brasileiro é assim também, sofre pra caralho, mas é um amor.

Você é religioso? Não.

E espiritualidade, você trabalha de alguma forma? Não.

É do tipo que acredita que quando morrer a luz apaga e acabou ou acha que tem uma continuidade? Nunca pensei muito sobre isso.

Você acredita em Deus? Tem momentos que eu acredito, momentos divinos, quase sempre ligados ao surf.

Você reza? Não.

Nem na hora do aperto? Ah, na hora do aperto já rezei.

Por que acredita que a praia, mesmo estando hoje mais cheia, mais suja e violenta, ainda exerce atração sobre tanta gente? Porque a praia é um tesão. Água, esporte, sol. No Brasil a praia é como se fosse uma festa, nego bebendo, conversando na beira da água, uma cultura forte de interação social. Por isso não me conformo em ver a praia das pessoas mais educadas, como Ipanema, ser tão imunda. Não consigo entender.

*Giuliano Cedroni, ex-diretor de Redação da Trip, é historiador, jornalista e roteirista. Atualmente dirige um núcleo de desenvolvimento de roteiros na Prodigo Filmes, produtora que assina séries de TV e documentários como Motoboys_vida loca.

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