Fogo cruzado
O verdadeiro Capitão Nascimento fala com Luiz Alberto Mendes, mais de 31 anos de cadeia
No canto esquerdo, Rodrigo Pimentel, apontado como o verdadeiro Capitão Nascimento de Tropa de Elite, 12 anos de polícia, sete no Bope. No canto direito, Luiz Alberto Mendes, mais de 31 anos de cadeia, dois homicídios e dezenas de roubos. Juntos pela primeira vez, falam de polícia e ladrão, honestidade e corrupção, tortura e covardia, ódio e família, droga e política
Rodrigo Pimentel é o outro lado de Luiz Alberto Mendes, Luiz Alberto Mendes é o outro lado de Rodrigo Pimentel.
Pimentel, 38 anos, cresceu na zona sul carioca.
Mendes, 57 anos, é da Vila Maria, periferia de São Paulo.
Filho de militar e dona de casa, o único da sua turma de garotos da Urca que queria ser policial.
Apanhava do pai alcoólatra, enquanto a mãe fazia bicos para colocar algum dinheiro em casa.
“Desde os 10 anos falava nisso”, lembra. Dito e feito. Não apenas entrou para a polícia militar, como virou capitão do Bope, o controverso Batalhão de Operações Policiais Especiais do Rio de Janeiro.
Vários moleques da sua área viraram bandidos, mas ele foi um dos poucos a sobreviver. Fugiu de casa aos 11 anos. Passou por reformatórios, até ter idade suficiente para prisão de gente grande.
Isso, aquela unidade de elite em que, durante os treinamentos, os soldados cantam coisas como “Homem de preto/ qual é sua missão?/ É invadir favela/ e deixar corpo no chão”.
Aos 19, foi condenado por homicídio e roubo. Só saiu da cadeia 31 anos e dez meses depois – fora o intervalo de duas fugas que, somadas, não chegam a quatro meses longe das grades.
Nada como um dia após o outro dia. Essas duas trajetórias, opostas e complementares, sofreram reviravoltas recentes. Em 2001, Pimentel pediu para sair: desistiu da polícia e fez pós-graduação em sociologia, na Uerj. Três anos depois, Mendes terminou de cumprir sua pena e foi solto. Um e outro, coincidência, escreveram livros sobre o que viram e viveram. Situações, pessoas e acontecimentos que não ficam para trás. Você sai da polícia ou da cadeia, mas a polícia e a cadeia não saem de você.
Mendes publicou Memórias de um sobrevivente, Às cegas e Tesão e prazer. Ao todo, mais de mil páginas com as histórias de um homem que, em suas palavras, viu o tempo passar “dando trombadas nos muros da vida”.
Pimentel escreveu Elite da tropa, ao lado de Luiz Eduardo Soares e André Batista, a partir das anotações que fez entre uma invasão à favela e outra.
Os livros renderam convites para dar palestras, ministrar oficinas literárias em presídios (“Quem me vê trabalhar na cadeia não sabe o sacrifício que é para mim voltar lá”) e escrever uma coluna aqui na Trip.
O livro virou filme, Tropa de elite. E ele, corroteirista da adaptação, desde então é confundido com o Capitão Nascimento – personagem de ficção criado a partir de vários personagens reais, inclusive o próprio autor.
Mais do que isso, deram a chance de “ter minhas coisas trabalhando” e de ser “valorizado pela primeira vez”. Hoje, separado e pai de dois filhos, tenta colocar de pé a montagem de sua primeira peça de teatro.
Antes, havia coproduzido Ônibus 174, documentário sobre o sequestro que foi transmitido ao vivo pela TV, em 2000. Hoje, casado e com dois filhos, tem uma empresa de consultoria em segurança – e também trabalha no argumento de Tropa de elite 2, que começa a ser filmado no início do ano que vem.
Polícia e ladrão, certo e errado, bem e mal. As coisas são mais complicadas que isso. Em um quarto de hotel na orla carioca, com vista para a praia de Ipanema e para a favela do Vidigal, Pimentel e Mendes destrincham o lado A e o lado B da violência no Brasil.
É mais difícil ser honesto na cadeia ou fora dela?
Mendes: Na cadeia é muito mais fácil ser honesto. Não tem tanta tentação. E tem outra, a cadeia exige honestidade. Qualquer roubo ali recebe a pena fatal. Se não for assim, não existe possibilidade de convivência. Já pensou, todo mundo roubando todo mundo? Tem que ter regras.
É mais difícil ser honesto na polícia ou fora dela?
Pimentel: É difícil ser honesto na polícia. Existe uma conspiração para corrupção. Fui abordado em todos os departamentos em que trabalhei, menos no Bope.
Como acontece?
Pimentel: O colega chega e diz que todo mês “vem um dinheirinho” do tráfico, das vans ilegais ou dos caça-níqueis. Se você trancar sua gaveta, enfiam a grana no seu armário. Eu tinha que dar esporro geral pra não entrar nessa, tipo “se aparecer dinheiro pra mim vou prender alguém”. Mas também não atrapalhava o negócio da pessoa: seria só eu nessa luta, ia virar maluco.
Qual a origem dessa “conspiração para corrupção”?
Pimentel: O argumento deles é inteligente: “Tu não vai pegar o dinheiro do bicho, não? O governador pega, os caras que mandam na gente pegam e a gente, que ganha mal, não vai pegar?!”. Não sei se o governador pega, tudo indica que pega. A política do Rio sempre foi promíscua.
Pimentel: “Não sei se o governador pega [dinheiro de corrupção], mas tudo indica que pega. A política do Rio sempre foi promíscua”
Sempre?
Pimentel: Não afirmo que o governador atual pega, mas digo que, historicamente, no Rio as ligações de políticos com a contravenção sempre foram muito próximas. O deputado do partido do governador [o PMDB] e ex-chefe de polícia Álvaro Lins foi preso pela Polícia Federal [ano passado, acusado de envolvimento com a máfia dos caça-níqueis]. Ou seja, um deputado que subia no palanque com o governador pra fazer campanha. Tenho certeza de que o governador não estava no esquema, mas é do partido dele. O mesmo partido de líderes milicianos como o Jerominho [Guimarães], que também está preso.
Como resistir ao argumento?
Pimentel: Você fica tentado. Por que não vou pegar essa porra desse dinheiro? O bicheiro quer dar, existe uma organização no Estado que pega e você não pega? Eu não pego porque minha formação não é essa, acredito em algo diferente. Acredito que essa porra um dia vai mudar.
Por que você virou policial?
Pimentel: Era um sonho de infância, falava em ser policial desde os 10 anos, e aquilo persistiu. Todo mundo já pensou em ser policial.
Você pensou, Mendes?
Mendes: Quando era criança tinha essa ideia.
Você poderia ter virado policial?
Mendes: Olha. Você não imagina como é complexa pra mim esta situação aqui. Apanhei de polícia desde que tinha 10 anos. Os caras me bateram e me bateram bastante, desde pequeno.
Ainda é desconfortável pra você estar aqui, ao lado de um policial?
Mendes: É. E é uma coisa que eu quero inclusive quebrar.
Pimentel, você poderia ter sido bandido?
Pimentel: Se morasse numa favela, acho que seria traficante. Na minha juventude, buscava me autoafirmar. Aí, pra ser uma pessoa respeitada pelo grupo, só sendo evangélico ou traficante. Hoje tem outra alternativa, em projetos sociais como os da Mangueira. Lá o garoto faz esporte, vai competir em Curitiba, conta pros amigos que andou de avião, veste um abrigo da Nike. Isso dá orgulho. A chance de esse menino ser seduzido pelo narcotráfico é zero.
As armas não atraem a molecada?
Pimentel: Tem uma fascinação. Já se escreveu sobre a atração que as mulheres das favelas sentem por quem anda armado. É mínima a chance de uma menina bonitinha gostar de um cara que não é do tráfico.
Tipo “minha AK-47 é maior que a sua”?
Pimentel: É AK-47, cordão de ouro, celular, tênis de mola. Se chegar na favela sem tênis de mola, você é um prego. A atração do jovem pelo crime é indissociável do consumismo.
Mendes: Em São Paulo, o negócio é moto. Se não tiver motinho a menina não sai com o cara.
Quando você viu uma arma pela primeira vez?
Pimentel: Meu pai é militar, tinha uma pistola em casa. Foi a primeira que vi.
Mendes: Tinha uns 9 anos e vi uma arma na vitrine de uma loja, dessas que vendem joias, relojoaria, essas coisas. Achei muito bacana aquele negócio brilhando, uma arminha tipo automática. Peguei sem ninguém ver e saí correndo.
Mendes: “É complexa pra mim esta situação [a entrevista ao lado de um policial]. Apanhei de polícia desde os 10 anos. Os caras me bateram e me bateram bastante”
Foi seu primeiro roubo?
Mendes: Um dos primeiros. Quando fui ver direito, a arma era um isqueiro [risos]. Mas tudo bem, porque os moleques ficaram me achando o bambambã. Quando minha mãe encontrou, me obrigou a devolver. Fui lá, morrendo de vergonha, com ela me puxando pela mão.
Você escreveu que sua mãe foi a pessoa mais honesta que você conheceu.
Mendes: Ela nunca pegou nem um tostão que eu tivesse roubado, sempre chorou muito por mim. Minha mãe era uma pobre coitada, tinha um medo terrível do meu pai. Ela dizia “tenho 50% de culpa de você estar preso, devia ter pegado você e ido embora viver nossa vida”.
Se sua mãe tinha 50% de culpa e seu pai 50%, você nunca teve culpa de nada?
Mendes: Porra, a culpa era muito mais minha! Aprendi que, se você culpa os outros, não tem como resolver nada. À medida que você assume sua culpa, tem condições de perceber onde errou.
Como você virou bandido?
Mendes: Você não vira bandido. Quando vê, tá numa situação em que a polícia tá atirando em você. Meu pai era alcoólatra, chegava em casa me batendo, espancando. Minha mãe também corria dele. A gente naquela pobreza. Aí, aos 11 anos, fugi de casa e fui pro centro de São Paulo. A situação ruim lá em casa me deu coragem. Achava que aqueles moleques, os primeiros meninos de rua da cidade, eram livres. Lá em casa não tinha liberdade nenhuma.
Como era a vida na rua?
Mendes: A gente vivia correndo. Correndo da polícia, do juizado de menores, das vítimas dos nossos assaltos. Roubava carteira, fazia arrombamentos, quebrava vidraças. Era mais vândalo do que criminoso. Não queria ficar rico, queria comer. E, depois de comer, queria curtir, me divertir.
Em Memórias de um sobrevivente, você diz que tinha “alguma coisa de errado” com você.
Mendes: Ainda tem [risos]. Não sei o quê. Hoje consigo viver com um padrão legal, pagando de honestidade. Mas sempre quis crescer, ser maior do que era. O sentimento era que eu não cabia na vida que tinha, que meu corpo era pequeno.
Ser malandro era uma maneira de se afirmar?
Mendes: Era, dava orgulho ser malandro, ser bandido. A gente dividia o mundo entre otário e malandro. Com os otários podia fazer tudo, mas com os malandros não podia vacilar. Quando fui preso, já matei o primeiro que mexeu comigo.
Como foi?
Mendes: Eu era molequinho, o menor da prisão. Como cresci na rua, sem comer nem dormir direito, não me desenvolvi. Fui ter barba com 30 anos de idade, não tinha pelo nenhum no corpo. Os caras me viam como se eu fosse uma moça.
O outro preso queria te comer?
Mendes: É. Tive que matar pra sobreviver como homem. Não tenho orgulho nenhum disso. Se fosse hoje, pedia para mudar de pavilhão, dava um jeito. Mas naquele tempo queria criar um nome, né, meu? Foi no Carandiru. Era um puta negão com dois estupros no prontuário. O cara falou “vem cá, vamos conversar”. Ele entrou num xadrez, eu marquei de entrar atrás. Passaram o ferrolho e fiquei sozinho com o cara dentro da cela. Lutamos por uma hora e meia lá dentro.
Uma hora e meia?
Mendes: É. Eu tava com uma faca improvisada, feita com um pedaço de ferro. Eu sabia que ele tava atrás de mim, então só andava armado. Quando veio pra cima, a faca entrou na barriga dele que nem manteiga, um negócio mole, esquisito. Foi mortal. Mas ele não parava, me chutava, me dava soco. Depois foi cansando. Aí, subi nele. Dei 47 facadas. Inclusive, fui absolvido do crime em si. Fui condenado pelo excesso de golpes.
Sentiu medo?
Mendes: Porra, medo?! Matei o cara de medo, meu! Medo total.
Você estava preso por homicídio, né?
Mendes: É. Foi num assalto a um posto de gasolina. O vigilante chegou armado e atirou na gente. Mas éramos quatro. O cara morreu com 22 tiros. A intenção não era matar, era derrubar o cara para ele não acertar a gente.
Arrependimento?
Mendes: Não. Foi casualidade, ele foi besta de querer vir pra cima com a gente armado. Pagou.
Pimentel: Traficante que mata policial também não deve sentir remorso, porque se o policial não quisesse morrer não tinha subido o morro.
E você, Pimentel, quantos já matou?
Pimentel: Olha só, a gente não mata. A gente é uma equipe trabalhando, um conjunto. O menino tá lá atrás de um poste e você tá atirando. Quando chega perto, vê que tem muito sangue e tal.
Nos sete anos de Bope, você participou de quantas operações?
Pimentel: Eram umas 80 operações por ano. Como tinha as escalas de serviço, devo ter participado de umas 200.
Quantas pessoas você calcula que sua equipe tenha matado?
Pimentel: Putz, muita gente. O Bope mata muita gente, tiramos corpo de favela dezenas de vezes. É ilusão achar que um bandido com fuzil vai se entregar. Um fuzil custa R$ 30 mil, só cara top no crime anda com um. Quem participou de combates não sabe quantos matou. Tem uma questão técnica que é assinar o auto de resistência, “fui eu que matei”. Existia um orgulho do policial em assinar, e também uma premiação para quem assinasse mais, a “premiação faroeste”. Eu não tinha vaidade de assinar auto de resistência. Mas, que eu tenha puxado o gatilho de perto, foram duas vezes.
Como foram?
Pimentel: Um vez foi num morro, atirei num bandido que não tinha mais que 20 anos. Perdeu um pulmão, mas tá vivo. A outra vez foi para defender patrimônio. Ainda era segundo-tenente da PM, tinha 22 anos. Tava num ônibus de bermuda e chinelo. Tinha velha, tinha estudante, mas o cara veio em cima de mim. Ele tava armado, eu também. Quando ele pegou minha mochila, atirei na barriga dele, na crueldade e na covardia. Tirei ele do ônibus, sentei no meio-fio, esperei a polícia chegar. O menino ainda conversou comigo uns minutos.
O que ele falou?
Pimentel: Alguma coisa como “não precisava disso, só queria a mochila”. A pessoa não se dá conta de que vai morrer. O menino morreu no hospital. Ferimento na região abdominal.
Se arrepende de ter atirado?
Pimentel: Não. Não me fez nenhum mal. Hoje, não tenho mais ódio dessas pessoas. Nem pena. Mataria um bandido na hora do assalto, um sequestrador. Se alguém fizer alguma coisa contra minha família, vou tomar uma providência. Mas não cultivo mais ódio, não.
Mendes, o que você sentia pela polícia?
Mendes: Tinha ódio, também.
E hoje?
Mendes: Polícia é necessário. Também quero ser protegido. Sou um cidadão, um velhinho baixinho, não ando armado e não tenho como me defender [risos].
Já foi assaltado?
Mendes: Já. Estavam assaltando o lugar onde eu ia comprar cerveja. Ainda tentei sair fora, mas não deu. Me tomaram R$ 5.
Pimentel: “Traficante que mata policial também não deve sentir remorso, porque se o policial não quisesse morrer não subia o morro”
E você, Pimentel?
Pimentel: A primeira foi aquela em que atirei no cara. A outra foi depois que saí da polícia. Tava com minha família no carro e veio um cara. Puxei a arma pro bandido, que fugiu sem reagir. Foi quando decidi parar de andar armado. Vou colocar minha mulher e meus filhos em risco por causa de um carro de merda, popular?!
Hoje é mais comum ver bandidos na classe média. você tem medo de seu filho virar bandido?
Pimentel: Tenho, é uma preocupação. No Rio acontece muito. Já prendi o filho de um militar que era motorista do tráfico. Isso começa nos condomínios fechados, no grupo da maconha, apesar de eu ser a favor da legalização. Depois, começam pequenos furtos dentro do condomínio. Evolui para venda de ecstasy, para espancar doméstica em ponto de ônibus e assim por diante. Essas gangues são típicas dos condomínios, de jovens que foram criados sem andar de ônibus, sem conhecer a rua, sem conhecer nenhum valor.
A solução é legalizar a maconha e proibir os condomínios.
Pimentel: [Risos] Nos condomínios você tem esse tipo de marginalidade. Na favela, é outro tipo: é o garoto sem opção de porra nenhuma.
Mendes, você tem medo de um filho seu virar bandido?
Mendes: Tenho um medo profundo, é um problema sério. A culpa recairia em mim, minha consciência não iria aguentar. Isso, não. Felizmente, depois que saí, perguntei pro meu moleque mais velho o que ele quer ser quando crescer: “Vou ser escritor que nem você, pai”.
E se um dos seus filhos decidisse ser policial?
Mendes: Se ele quiser, tranquilo. Mas vai estudar, não vai ser soldado, né? Vai ser tenente.
Pimentel, você gostaria que seu filho virasse policial?
Pimentel: Não. Ele também não demonstrou nenhum interesse. Viu Tropa de elite, foi ao Bope comigo, mas nada. Fala em ser professor, carteiro. Na idade dele eu assistia a Chips, Swat.
Mendes: Na cadeia não dava pra assistir, mas agora tô vendo Swat na TV a cabo.
Você assistiu ao Ônibus 174, que tem coprodução do Pimentel?
Mendes: Não assisti ao filme, não. Mas vi a cena toda pela televisão, ao vivo, da cadeia. A gente torcia pelo cara [que sequestrou o ônibus].
Por que a operação deu errado, com a refém morta pela polícia e o sequestrador executado depois de preso?
Pimentel: O policial não tava pensando em salvar a vida da refém, mas em matar o bandido. De forma geral, o policial brasileiro não quer fazer segurança pública, quer prender ou matar bandidos. E, quando você coloca alguém em risco pra isso, não está fazendo segurança pública.
Mendes: Admiro o que você tá falando, é exatamente o que gostaria que a polícia fosse.
Pimentel: No Ônibus 174, fomos acusados de defender o [sequestrador] Sandro, de transformar bandido em herói. No Tropa de elite, disseram que a gente era fascista.
Mendes: Acontece que o Tropa de elite coloca a culpa no usuário, no rapaz da universidade que fuma o baseadinho. Em nenhum momento o filme acusa os financiadores da droga, o esquema que está por trás de tudo.
Pimentel: Era a visão de um capitão da polícia com 27 anos de idade.
Mendes: Não combina com o que você tá falando.
Pimentel: Em algum momento, foi a minha visão. O Bope até ajudou a mudar isso. O filme é simplista, o Capitão Nascimento é simplista. Foi aplaudido por gente de todas as condições sociais, “finalmente alguém falou que a culpa é do usuário”. Pobre é até mais conservador que rico. Há um consenso de que a porrada funciona, mas a violência urbana tem a ver com várias coisas, como desemprego e desigualdade social. Mas é bom deixar claro que quem fuma maconha compra essa merda de alguém que estabelece uma ditadura armada na favela ou na periferia.
Qual a solução?
Pimentel: Legalizar.
Mendes: “Tomei tanto pontapé da polícia na barriga que não posso beber destilado. há males que vêm para o bem: meu pai morreu de beber”
Mendes: Legalizar acaba com os traficantes.
Legalizar a maconha ou as drogas em geral?
Pimentel: Vamos lá. Foi um processo lento para eu entender que a maconha não era o Satã. Lembro de uma festa que fui com minha mulher, uma formatura da Fundação Getúlio Vargas, e tinha uns dez casais fumando maconha. E eu no dia seguinte ia botar roupa preta e matar quem tava vendendo aquela porra. Num processo de amadurecimento, entendi que tinha que legalizar, que matar traficante era um desperdício de tempo e de dinheiro público.
Mas, se as outras drogas continuam ilegais, o tráfico sobrevive.
Pimentel: É uma falsa solução. Mas só por defender a legalização da maconha já tomo vaia. E não prenderia o usuário de cocaína, iria atrás dos chefões. A repressão é cínica, só prende pobre. Em Chicago, o foco da repressão são o médio e o grande traficantes. Talvez seja um caminho.
Mendes: Eu acredito na liberação. Prender o usuário não resolve.
O que você já usou?
Mendes: Já usei de tudo. Cocaína, ácido, heroína. Gostava muito de droga injetável.
Pimentel: E crack?
Mendes: Já usei ele mesclado, misturado com maconha. Se fosse optar por uma droga, optaria pelo mesclado. Me acalma. Sou um cara ansioso. Só que ele vicia, então não dá pra fumar. Acho que o homem não pode ficar viciado em nada.
Você tem medo de virar alcoólatra, como seu pai?
Mendes: Tomei tanto pontapé da polícia na barriga que não posso tomar bebida destilada. Se tomo mais de duas doses, fico dois, três dias sem cagar. E todo dia acordo com dor na região do intestino. Há males que vêm para o bem: meu avô morreu de beber, meu pai morreu de beber.
E você, Pimentel, o que experimentou?
Pimentel: Nem fumei maconha. E não bebo. até provei, mas não gostei. Não é meu barato.
Você já classificou os policiais como truculentos, corruptos ou omissos. Em quais categorias você se encaixava?
Pimentel: Fui truculento e omisso, não mas não fui corrupto.
Truculento como?
Pimentel: Não assumo tortura. Não vou falar sobre esse assunto. Mas você entenda o que quiser, até pela minha negativa em falar do assunto.
Isso já é uma resposta.
Pimentel: Pra bom entendedor é uma resposta, lógico. Fui truculento. Não com preso na cadeia, mas com prisioneiro na favela.
Batia?
Pimentel: Isso tá incluído na outra pergunta, bater é tortura.
Você concorda com uma frase do seu livro que diz “em alguns casos, nem toda tortura é tortura”?
Pimentel: Concordo. Olha, o policial desce da favela com seis fuzis. Alguém acha que ele falou: “Meu filho, você está preso”. E o preso responde: “Então vou buscar mais cinco fuzis pro senhor”. Não é para fugir da responsabilidade, mas, se você pergunta se já torturei, digo que o Estado brasileiro tortura. Você já andou de camburão, Mendes?
Mendes: Orra! Pra caramba.
Pimentel: Então, quando o policial coloca sete presos na caçapa.
Mendes: É tortura.
Pimentel: Lógico. Quando enfiam mais de cem presos numa cela, é tortura. O delegado é torturador, o promotor que não correu atrás pra acabar com aquilo é torturador. Tem que colocar tudo no mesmo saco. O governador e o juiz dormem o sono dos justos, mas o policial que coloca o bandido no saco é que é o filho da puta.
Deixando o Estado de lado e partindo para a questão mais pessoal: como a tortura toca você pessoalmente?
Pimentel: Toda vez que se pega um torturador, se esquece que por trás dele tem uma estrutura cínica, organizada, feita pra tortura. Acho uma covardia a individualização da tortura.
Torturar não é covardia?
Pimentel: Hoje, acho covardia sim.
É possível uma polícia sem tortura?
Pimentel: É, se você investir milhões em inteligência e em tecnologia.
Mendes, você já foi torturado, né?
Mendes: Muitas vezes, desde pequeno. Fui pela primeira vez pro pau de arara com 14 anos. Queriam descobrir os caras que compravam a mercadoria que a gente roubava. Depois de maior de idade, queriam saber dos assaltos, dos companheiros, essas coisas.
Como eram as torturas?
Mendes: Ah, depende. Quando fui preso aos 19 anos, estavam com raiva porque baleamos dois policiais. Três parceiros fugiram, e os caras queriam pegar eles de qualquer jeito. Me penduraram no pau de arara todo amarrado, sem roupa, com o cu pra cima. Aí começa: batem com cassetete, dão choque. Amarravam um fio no meu pau, enfiavam outro no cu e giravam a manivela da maquininha de choque. Fiquei três meses e meio apanhando quase todo dia. Não conseguia mais comer, não conseguia mais dormir.
Pimentel: Caralho.
Mendes: Ainda batiam com uma palmatória de ferro nas unhas, assim de frente, para encravar na pele. Meu pé ficava uma bola, inflamado. Até hoje minhas unhas são encravadas. Penduravam um pneu no pescoço pra sufocar, enfiavam na boca um pano sujo de graxa ou um punhado de sal. Você se caga, se mija.
Como aguentou?
Mendes: Tinha um médico que, antes da tortura, punha aquele barato pra medir a pressão, ouvir o coração: “Tá bom, mete o pau”. Tinha ódio dele. Eu e mais um queríamos matar esse cara. Conseguimos um furador e duas giletes na cadeia. A gente ia pular no cara e iam matar a gente em seguida, era suicídio mesmo. Mas naquele dia o médico não foi. Aí, meu, não aguentei: me cortei todo com as giletes. Queria ir pro hospital pra parar de apanhar. Ainda tenho as marcas. Cortei a veia em sete lugares, levei 38 pontos. Com aquele monte de sangue, os caras não podiam me pendurar mais. Mas, quando voltei do hospital, me penduraram de novo, por um braço só.
Pimentel, nesse caso você considera que a tortura é mesmo tortura?
Pimentel: Isso aí tem componentes de sadismo, de maldade. Nunca vi um negócio assim. Presenciei coisa rápida, pra saber uma informação, onde está o fuzil, pra onde correu fulano. Bater num cara ou botar no saco é menos desumano que deixar o cara 15 dias numa cela do Rio durante o verão.
E colocar o suspeito numa caixa-d’água e colocar fios elétricos, o tal “golfinhos de Miami”?
Pimentel: Vamos lá. É uma política de segurança em que as pessoas aplaudem o resultado, mas ninguém pergunta o que você fez. Fui acusado de tortura uma única vez, por um bandido que tinha prendido dois anos antes. Disse que tinha apertado o pescoço dele, batido com um cabo de vassoura. Fui chamado para depor e, quando vi o cara, lembrei que não tinha tido tortura. A única vez em que fui acusado de tortura, não tinha torturado.
Alguém resiste à tortura?
Pimentel: Não conheço ninguém que tenha aguentado, que não tenha caguetado.
Mendes: Não dei a fita porque não sabia de nada. Era uma situação extrema, graças a Deus não sabia de nada. Por conta disso, não caguetei e ganhei moral na cadeia. No pau de arara, o cara confessa até o que não fez, o cara vai buscar a mãe.
Pimentel: “a única vez em que fui acusado de tortura, vi o cara e lembrei que não tinha tido tortura”
Você já torturou alguém?
Mendes: É humano torturar. Não houve oportunidade, mas, não sei, talvez fizesse. Tinha insensibilidade suficiente pra isso.
Pimentel, você já ficou em crise por ter sido violento?
Pimentel: Não.
Teve depressão?
Pimentel: Alguma coisa parecida com depressão. Não sei, não fui ao médico. Naquela época, não tinha psicólogo na polícia. Sentia taquicardia à noite, tinha insônia.
Por que você pediu pra sair?
Pimentel: Tava de saco cheio, não acreditava mais naquele modelo de repressão. Primeiro, saí do Bope. Tava remando contra a maré. Uma vez marcaram uma operação num morro no dia da volta às aulas. Falei pro comandante que ia morrer criança. Não deu outra, uma criança foi baleada. Voltei pro batalhão feliz, olha que doido, rindo porque aconteceu o que eu tinha falado. Aí o comandante me disse para procurar outro lugar onde servir. Depois, pedi para sair da polícia. Estava desmotivado com aquilo tudo.
É difícil ser ex-policial?
Pimentel: Não. Na verdade, depois de dez anos você não sai da polícia, você fica inativo. Não me envergonha ser policial. Mas acho que contribuí mais com a polícia do lado de fora do que do lado de dentro. Tropa de elite foi mais importante pra polícia do que meus 12 anos de serviço.
E o estigma de ex-presidiário?
Mendes: Vou viver a vida toda com isso. A gente tem que dar explicação, é foda. Apesar de que, hoje, me apresentam como escritor.
No início dos anos 80, você estudou na prisão, passou no vestibular para direito na PUC-SP, conseguiu autorização para ir às aulas desde que voltasse para a cadeia no fim do dia. Por que decidiu fugir, depois de tanto esforço?
Mendes: Estudei pra caralho, bicho. Cheguei semianalfabeto na cadeia e passei no vestibular, disputando com a molecada do colégio São Luís e do Mackenzie. Durante 20 meses, acreditei nesse sonho. Meu maior problema foram as meninas, comecei a comer todas.
Qual o problema?
Mendes: Grana. Não tinha dinheiro pra pagar nem café pra garota. Quem bancava a condução era minha mãe, que trabalhava de copeira.
Você está livre há cinco anos. Como resistir à tentação do dinheiro fácil?
Mendes: Pra começar, não existe dinheiro fácil. Crime virou operariado, hoje é tudo organizado. Nunca consegui participar de coisa assim, em que alguém mandasse em mim. E não tenho mais necessidade de roubar. Consigo ter minhas coisas trabalhando. Construí minha casa agora, num terreno que minha mãe deixou.
E, aos 57 anos, deve ser mais difícil encarar a cadeia.
Mendes: Não tenho medo de voltar pra lá, não, meu truta. Não tenho medo de cadeia, nem de morrer. Minha vida não foi assim tão legal pra achar tão importante continuar vivo. Não tenho apego a porra nenhuma. Mas valorizo muito o dinheiro que ganho com meu trabalho. Parece simples, mas para mim é profundo. Tenho orgulho. É a primeira vez na minha vida que estou sendo valorizado.
Você, Pimentel, tem medo de morrer?
Pimentel: Não. Tinha muito medo no meu último ano no Bope, quando meu filho nasceu. Comecei a me acovardar nas operações. Sou o único policial que não tem medo de dizer que se acovardou. Uma vez, meu colega caiu baleado, tava morrendo ao meu lado, e eu não saí de trás do poste pra puxar ele. Quem tirou o policial foi um pastor, com a Bíblia na mão. Fiquei envergonhado.
Qual foi a última coisa ilegal que você fez?
Pimentel: Já comprei DVD pirata.
Tropa de elite?
Pimentel: Comprei [risos]. Não tava no cinema ainda. Mas pirataria é um crime brabo.
Mendes, qual foi a última coisa ilegal que você fez?
Mendes: Não consigo lembrar agora [risos]. Tô do lado da polícia.
Polícia e ladrão são mais parecidos que se imagina?
Pimentel: São seres humanos, têm mãe, mulher, filho.
Mendes: Se não radicalizar, dá pra conversar.
Este encontro podia ter acontecido há uns anos?
Mendes: Há uns anos eu tava preso, ele ia lá me bater [ri].
Agradecimento Hotel Praia Ipanema
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