FGTS: as letras do demônio
Burocracia é ocultismo de pobre
Eu achava que já sabia tudo sobre ocultismo até conhecer as assustadoras letras: FGTS. São quatro inocentes sinais gráficos que ganham um poder demoníaco quando juntos, comparável ao 666. Só que enquanto o tal número da besta atrai as elites, eruditos, diretores de cinema e metaleiros, o FGTS manipula uma massa desdentada, quasímoda, sedenta por alguns centavos a mais nas suas contas bancárias.
A iniciação
Segundo a imprensa, eu teria uma grana a receber do governo. Desde que participasse de alguns rituais estranhos. Seduzido pelas promessas de consumo, sucesso e poder, resolvi encarar. Preenchi alguns papéis que são fornecidos descaradamente pelos Correios. Pelo jeito, as autoridades são coniventes com a burocracia-negra. Estranhei as palavras de ordem, os sinais esotéricos dos formulários e, principalmente, o ar sombrio das autoridades daquela estranha seita, chamadas de "funcionários". Mas estava disposto a vender minha alma. Nem que fosse fiado. Disseram que eu deveria ir a um templo conhecido como Caixa Econômica Federal e aguardar mais instruções. A expectativa me deixava mais vivo e forte: segui imediatamente para o local.
O templo da perdição
A aparência do templo era impressionante: gigante, todo de vidro, cercado de pessoas com roupas cerimoniais. Aproximei-me com cuidado e evitei encará-las. Esperava que alguém gritasse "Tulsa Doom" e denunciasse que eu era um estranho ali. Mas parece que não havia iniciados, todos estávamos apenas no primeiro passo da aquisição da (des)graça.
Revolucionários de fila
Logo na entrada do templo, anões, mulheres barbadas, gordos, faquires, cegos, desproporcionais, todo tipo de gente formava uma imensa fila. Posicionei-me e fiquei em silêncio. Um dos rituais de iniciação era reclamar do mundo. Havia dezenas de oradores de fila: todos revolucionários, conscientes dos problemas do país, críticos, eloquentes. Exalavam litros de perdigotos. Perguntava-me por que, afinal, Lênin começou a revolução na Rússia. Fidel Castro então foi de uma obtusidade bushiana: com a ajuda de uma fila brasileira sua revolução seria uma quermesse de vila. Nossas fileiras são mais revolucionárias do que as do Império Romano.
Peregrinação
Nossa peregrinação começou às 10h00. Consegui andar cerca de 3 metros até as 14h00. Depois é que as coisas ficaram lentas. Só entrei no templo às 17h40: quase 4 horas para andar um metro. Muitas pessoas não suportaram jejuar por todo esse tempo e desistiram. Outras tentaram encurtar o caminho. Mas, como disse Jesus, a porta é estreita. E tem detector de metais.
Sacrifícios
O sacrifício físico não era o único obstáculo a ser vencido. Ao meu lado, uma garota era evidentemente testada em sua capacidade de calar a boca. Olhava desesperadamente para os lados, tentava conversar. Mas, surpreendentemente, todos a ignoravam. Em todos os pontos da fila as pessoas gritavam, reclamavam, já estavam íntimas. A solidão parecia pesar-lhe tanto que começou a bufar, grunhir, soltar sons estranhos (por sorte, não havia cheiros). Mexia-se com nervosismo e passava as mãos no rosto. Eu estava preparado para lhe aplicar uma injeção no peito, como um gangster de filme do Tarantino. Ou talvez conversar. Mas quem sou eu para atrapalhar a iluminação de alguém?
O Último Portal
No portal de entrada do templo, tive de me desapegar de todos os bens materiais: celular, óculos, chaves, moedas etc. Por mais que fizesse, não era aceito: sempre tinha que voltar e humildemente me submeter ao julgamento dos funcionários de batinas. Este é o momento mais difícil do processo de eliminação do ego: você está a poucos passos do objetivo, mas tem que se controlar e demonstrar várias vezes que é confiável, dócil, persistente. Porém, sou forte: consegui entrar no templo.
Mestres iogues
Por dentro, o templo também é de uma beleza quase indescritível: branco, com tons de cinza e azul calcinha. Funcionárias lindas, com maquiagens carregadas, peitos murchos, sardas e óculos de lentes grossas. Esperaríamos mais algumas horas em confortáveis poltronas, contemplando o equilíbrio das sinalizações e os anúncios das maravilhas que se obtêm ao participar daquela instituição. Teríamos consultas individuais com mestres iogues. Eles atendiam com movimentos lentos e estudados: demoravam uma eternidade para completar cada ação. Nada ali tinha a pressa e o desespero da vida cotidiana.
A cara do Demo
Estava em profunda meditação quando chegou a minha vez. Levantei-me e, um pouco nervoso, espalhei os documentos na mesa do mestre. Ele me olhou com um ar ameaçador, de quem julga os vivos e os mortos. Só então me lembrei de que estava num ritual satânico. O cristianismo me ensinou a associar o branco, a leveza e os peitos murchos ao paraíso. E eu precisava entender que o diabo sempre aparece em dez vias carbonadas e protocoladas.
Crise de identidade
O mestre pegou minha carteira de identidade. Súbito, suas veias saltaram e sua voz ficou gutural: "não pode dar entrada no FGTS com este RG". Tentei convencê-lo de que aquele era um RG à David Carson, desconstrucionista. Mas a temperatura subiu e a pele do mestre ficou vermelha e escamosa: "você tem um problema de identidade. Ela está manchada, castigada pela idade. Você precisa renová-la, livrá-la dos buracos e rasgos do tempo". Quase pulei no seu colo e o chamei de psicanalista. Mas ali estava a personificação do demônio. Quer dizer: teria de chamá-lo de psiquiatra. O problema é que não haveria tempo para gentilezas: meus documentos foram rejeitados, minha iniciação fora recusada.
Alma à venda
Todo sonho de poder e consumo desmantelado. De nada adiantaram as 10 horas de fila. Eu teria de ir além e passar pelos umbrais de um lugar chamado Poupa Tempo. Recuperar a prova do meu nascimento, imprimir minhas digitais, enfrentar novas filas e gurus. Decifrar novos caminhos para guichês ainda mais distantes, pagar novas taxas e, principalmente, testar minha persistência. Chego em casa, olho para o espelho e me pergunto: será que minha alma vale todo esse esforço? Não seria mais fácil anunciá-la no Shop Tour? Aí está a saída: vou vendê-la ao Grupo Imagem. Quem sabe eu ganho um Ambervision de brinde?