Fazendo a egípcia
Lemos: "O que o Brasil tem a ver com a China, a Rússia, o Irã e o Afeganistão?"
Ao assinar o novo tratado de telecomunicações em Dubai, perdemos a oportunidade de defender princípios democráticos e liderar uma posição nobre no cenário internacional. O texto é uma bomba: abre a porta pra a censura e o controle da internet
O que o Brasil tem a ver com a China, a Rússia, o Irã e o Afeganistão? Todos assinaram o texto do novo tratado de telecomunicações negociado em Dubai no mês de dezembro. O texto, que deveria ser técnico e inofensivo, é uma bomba: abre a porta para a censura e o controle da internet. A razão é que foram incluídas várias propostas de países autoritários, que não só praticam censura na rede como não ligam para democracia ou direitos humanos.
É um mico para o país, que perdeu a oportunidade de defender princípios democráticos e liderar uma posição nobre no plano internacional. Defender uma internet livre e aberta é algo totalmente compatível com a nossa Constituição. Apesar disso, o Brasil ficou literalmente “fazendo a egípcia”: apresentou posições em cima do muro ou rocambolescas. Na hora do vamos ver, o mundo se dividiu em dois blocos: um contra e outro pró-liberdade e direitos humanos. Acabamos nos juntando a essa turma barra-pesada do contra.
Os países europeus, junto com Chile, Colômbia, Índia, Estados Unidos e 50 outros, pularam fora das negociações. Decidiram não assinar o tratado, justamente pelo temor de que ele dê poderes exagerados para a ONU, criando novas formas de controle sobre a internet.
É claro que o modelo atual de gestão da rede não é adequado. A internet é hoje regulada por um órgão chamado Icann, que possui conexão direta com o governo americano. Pensar em uma alternativa a esse modelo é tarefa coletiva obrigatória para o mundo todo. No entanto, a solução não é entregar a tarefa para a ONU. Isso é pior do que a situação atual. Primeiro porque o texto inventado por China, Rússia e amigos prevaleceu. Segundo porque, bem ou mal, na Icann as decisões são tomadas de forma “multissetorial”: tanto usuários quanto ONGs, empresas, sociedade civil e governos sentam-se lado a lado para decidir o futuro da web. Na proposta da ONU, apenas os governos decidirão tudo.
Ducha de água fria
Uma amostra do que isso provoca já foi vista na reunião em Dubai: houve ativistas de todo o mundo sendo literalmente expulsos do plenário das reuniões, apenas por não pertencerem a nenhuma delegação oficial. São cenas que revoltam o caráter aberto, descentralizado e inclusivo que orientou a organização da internet desde o seu surgimento.
Desse jeito, nosso país dá uma ducha de água fria em todos aqueles que ainda têm esperanças de que podemos ser um farol da liberdade na rede mundial. Mesmo por aqui as coisas não vão bem. Não estamos conseguindo sequer votar o chamado Marco Civil da Internet. Ele foi apelidado de “a Constituição da internet”, justamente por assegurar direitos e garantir que a rede permaneça sempre aberta e livre. Está parado na Câmara dos Deputados.
Certa vez escrevi um artigo para a Universidade de Princeton dizendo que o Brasil era o único dentre os Brics que defendia a liberdade na internet (veja aqui: http://bit.ly/V3Hb8I). Infelizmente ele já ficou obsoleto.
*Ronaldo Lemos, 36, é diretor do Centro de Tecnologia da FGV-RJ e fundador do site www.overmundo.com.br. Seu e-mail é rlemos@trip.com.br