Farinha do mesmo saco
Sozinhos os dois não ficam nunca mais: descobriram, há apenas oito meses, que são irmãos
– Bicho, sou seu irmão.
Foi assim que Jacques contou para Marcelo que eles eram filhos do mesmo pai. Marcelo não estranhou, não pediu exame de DNA. Disse apenas... “Eu sei”, apesar de a hipótese de ter um irmão perdido por aí nunca ter passado pela sua cabeça antes. “Na hora, o coração saiu do meu corpo e entrou no dele. A sensação foi essa, como se houvesse uma ponte entre os dois corações. Falei: ‘Deixa eu te abraçar, te cheirar, te sentir’. Foi o momento mais feliz da minha vida”, lembra Marcelo, emocionado.
Não é todo dia que se vê um sujeito assim baixar a guarda e abrir o coração. Afinal, estamos falando de Marcelo Biju, definido pelos amigos como “o cara mais casca-grossa de todos”, que nas várias temporadas que passou no Havaí pegou ondas do tamanho de pequenos prédios só na remada e aprendeu com os locais a caçar javalis. Que é um dos raros brasileiros a ser respeitado – e até querido – pelos Black Trunks, grupo de surfistas que preservam, muitas vezes na base do tapa, o localismo em certas praias havaianas. Que carrega tatuada na barriga a setença “Death to the enemies” (Morte aos inimigos) e nas costas “Only the dead will see the end of war” (Apenas os mortos verão o fim da guerra). Mas que, faz pouco tempo, exibe também um “Jacques” em letra cursiva gravado no lado direito do peito.
O homenageado, por sua vez, pediu para escreverem “Death or glory” (Morte ou glória) na lateral do abdome – a frase foi dita por Marcelo enquanto ele se olhava no espelho numa cena da série Sangue, suor e javali, protagonizada pelo próprio recentemente no canal Off. Jacques assistiu ao episódio na época, e sabia que o personagem principal era seu irmão do Rio de Janeiro que ele ainda não conhecia. Ali Jacques descobriu mais coisas sobre Marcelo, já que antes tudo que sabia era seu nome. E viu também, pela primeira vez, diversas imagens do pai. Enquanto isso, Marcelo sequer desconfiava que tinha outro irmão além de Roberta.
Não faltam semelhanças e coincidências em suas biografias, algo que talvez a genética ou apenas o acaso consiga explicar
Antes de o programa ir ao ar, Jacques já tinha visto Marcelo pessoalmente algumas vezes e até trocou algumas palavras com ele. No Fashion Rio de 2009, os dois foram apresentados por amigos em comum. “Ele foi tão gente boa comigo, ofereceu de ficar na casa dele no Rio e tal, que achei que ele já sabia de tudo”, diz Jacques. Mas foi apenas em março último, em um jantar no meio da semana em um restaurante, que ele ganhou coragem e soltou: “Bicho, sou seu irmão”.
A história de Marcelo Biju e Jacques Dequeker (os dois preferem não revelar as idades) é tão fantástica que parece ficção, plot de um filme de Almodóvar. Mas é verídica e, diferentemente do último capítulo de uma novela global, foi se desenrolando aos poucos.
Jacques tinha apenas 13 anos quando sua mãe jogou a bomba: seu pai verdadeiro não era aquele cara que morreu quando ele ainda era criança, mas sim um tal de Luiz Leopoldo Noronha, mais conhecido como Bijupirá, um exímio mergulhador e caçador submarino que morava no Rio de Janeiro com a esposa e dois outros filhos – Marcelo e Roberta. Na casa dos Dequeker, que moraram em Porto Alegre (onde Jacques nasceu), Guarujá e São Paulo, viviam, além dele, mais sete crianças (Pier, Andrea, Ronaldo, Alexandre, Cassiano, Roberta e Marcos), cuidados pelo seu segundo padrasto e pela mãe – Jacques é o único filho da breve relação dela, “uma francesa de 70 anos inteiraça”, com Bijupirá. Não é de se espantar, portanto, que o pré-adolescente não tenha se empolgado com a notícia de que tinha mais dois irmãos para dividir a atenção e um terceiro pai para vigiar seus passos. “Fora isso”, acrescenta, “eu era muito orgulhoso. Achava que o pai é que tinha que ir atrás do filho.”
"Na hora [da revelação], o coração saiu do meu corpo e entrou no dele. (...) Falei: 'Deixa eu te abraçar, te cheirar, te sentir'", lembra Marcelo
Em vez de se despencar até o Rio de Janeiro e conhecer a nova família, o jovem preferiu tocar a vida e focar no seu maior sonho: ser jogador de futebol. Chegou a ser um dos ponta-esquerdas do time profissional do Internacional, mas saiu num corte na equipe. Com um amigo, embarcou então para a Califórnia para viver a vida sobre as ondas e ralar em subempregos. Quase virou pescador de caranguejos gigantes no Alasca, mas resolveu voltar para o Brasil. “Eu tinha 26 anos. Era vagabundo, fodido e mal pago”, define.
Mas não por muito tempo. Ao regressar, o mesmo amigo que o acompanhou na aventura californiana descolou para Jacques um bico para ser assistente de seu pai, o fotógrafo Pedro Flores. Jacques gostava de desenhar, chegou a fazer alguns anos de faculdade de arquitetura. Mas de fotografia não sabia lhufas. Mesmo assim, pegou o trampo. Dois anos depois, já estava fazendo assistência para big shots do ramo, como Paulo Vainer. E, aos 30 anos, em agosto de 2000, finalmente debutou na carreira solo, clicando a supermodelo Shirley Mallmann para a capa da revista Vogue.
"Meu pai é meu herói. Dói saber que o Jacques não conheceu ele. Os dois são muitos parecidos, é assustador", lamenta Marcelo
Coruja, a mãe resolveu ligar para Bijupirá e revelar que o lance dos dois, ocorrido em Búzios (RJ) décadas atrás, tinha rendido um fruto: seu nome era Jacques, ele usava o sobrenome da mãe e estava no expediente de uma das principais publicações de moda do mundo. A boa notícia veio na pior hora para Bijupirá. Dono de uma apneia de deixar qualquer um sem ar, ele descia mais de 30 metros em direção ao fundo do mar para resgatar outros mergulhadores. Mas assim que saía da água acendia um cigarro. Descobriu, ao mesmo tempo, que tinha um filho que não conhecia e que um câncer havia se instalado em seu pulmão. Bijupirá resolveu ficar na sua. Morreu em 2002, sem conhecer o outro homem que deu ao mundo. “Meu pai é meu herói. Dói saber que o Jacques não conheceu ele. Os dois são muito parecidos, é assustador”, lamenta Marcelo. Sempre agarrado ao pai, ele herdou o apelido de Bijupirá, o peixe que está sempre acompanhando outro peixe.
Quando soube da morte do pai, Jacques resolveu que era hora de ir atrás de Marcelo. Mas com calma, para dar tempo de a cabeça se acostumar com a ideia. Depois dos poucos encontros fortuitos que tiveram, sem ele nunca revelar a Marcelo que os dois tinham o mesmo sangue correndo nas veias, Jacques pediu para um amigo dos dois marcar um jantar. “Pensei: foda-se, agora eu vou falar. O máximo que vai acontecer é eu dar na cara dele”, conta. Papo vai, papo vem, Marcelo começou a narrar algumas histórias do pai. Foi a deixa para Jacques soltar o jab: “Bicho…”.
O golpe nem de longe derrubou Marcelo. Pelo contrário, lhe deu novo ânimo. Há quase sete anos sem surfar, por conta de uma contusão no ombro, ele não vê a hora de subir numa prancha novamente. “Senti uma alegria que não dá para explicar. Sempre faltou um irmão na minha vida. Por isso tratava meus amigos como irmãos, mas os que eram fiéis de verdade morreram ou me decepcionaram”, desabafa.
"Agora tudo que quero é cuidar dele, dar o amor que meu pai não deu."
Na prática, são apenas oito meses de irmandade. Mas, para quem olha de fora, parece que os dois se conhecem desde sempre. Não faltam semelhanças e coincidências em suas biografias, algo que talvez
a genética ou apenas o acaso consiga explicar.
O shape, troncudo e tatuado, é quase igual. A cara de mau, que se esvai tão logo o papo engrena e a intimidade cresce, também.
Ambos têm – ou pelo menos tinham – fama de brigões. “Prefiro dizer que a gente é justiceiro. O meu pai, ou melhor, nosso pai, também era assim, sempre defendia os mais fracos”, explica Marcelo, que já treinou boxe e é discípulo da família Gracie no jiu-jítsu. Jacques tem um currículo parecido: entrou no boxe aos 19 “para ver se acalmava um pouco”, pratica muay thai e, desde que conheceu o irmão, é do jiu-jítsu também.
Filho e irmão de peixe, peixe é. Apesar de ter entrado mais tarde no cardume, não restam dúvidas de que Jacques é um autêntico Biju. Pegou muita onda na vida (“Mas muito menores que as do Marcelo”) e é um hábil – e corajoso – mergulhador, vide sua famosa série de fotografias de tubarão.
"Nossa ligação é muito forte. Sei exatamente o que ele está pensando. Osu o único que entende esse louco aí", manda Jacques
Agora, tudo que os dois querem é se divertir com as paixões em comum, compartilhar um com o outro suas histórias de vida e… ser irmãos, enfim. “Queremos fazer um documentário sobre isso tudo, pegar onda no Havaí”, anuncia Jacques. “Lutar, mergulhar com tubarão”, emenda Marcelo. Desde março, os dois se falam dia sim, dia também, no telefone. Jacques mora em São Paulo, mas sempre que dá vai ao Rio visitar Marcelo e já tem até a chave do seu apartamento. “Nossa ligação é muito forte. Sei exatamente o que ele está pensando. Sou o único que entende esse louco aí”, manda Jacques, tirando uma com a cara de Marcelo. Sabe como é, coisa de irmão.