Fala, Neném

Maior filósofo do futebol brasileiro, Neném Prancha foi imortalizado por suas pérolas

por Marcos Eduardo Neves em

Maior filósofo do futebol brasileiro, Neném Prancha foi imortalizado por suas pérolas sobre o esporte – ainda que muitas delas não tenham sido de sua autoria

 

O futebol pode transformar figuras patéticas em mitos. Leva homens comuns à condição de lendas. É capaz de esculpir heróis a partir de reles mortais. O caso sui generis de Neném Prancha aglutina e sintetiza tudo isso. Personagem quase rodriguiano, de tão misterioso e carismático, o misto de folclore e realidade em torno de sua personalidade permanece vivo, apesar de mais de três décadas terem se passado desde a sua morte.

Sujeito simples e de fala mansa, Antônio Ferreira Franco de Oliveira carregou nos ombros mais do que os sacos de material esportivo que conduzia às areias da zona sul do Rio desde os anos 30. Neném Prancha, como se tornou conhecido, carregou por toda a vida o peso de ter se tornado “o maior filósofo” do futebol brasileiro. De frasista, na realidade, mais tarde descobriu-se que não tinha tanto. Seu dom maior era conhecer muito sobre a peça principal do tabuleiro da pelota, o jogador.

Fruto do amor entre um biscateiro e uma doméstica, Neném saiu aos 11 anos da pequena Resende para a Cidade Maravilhosa. A primeira desilusão foi o fracasso no campo, como jogador do obscuro time Carioca. Para seguir em frente, em vez de porres homéricos, preferiu beber da fonte da juventude. Mergulhou de cabeça nas areias de Copacabana como treinador de crianças e jovens.

Parrudo e alto, seu corpo forte escondia um mulato solitário, feio e introvertido. Muitos o tinham como assexuado. Por causa do tamanho das mãos (23 de cm comprimento) e dos pés (sapatos de tamanho 44) ganhou o apelido de Prancha. Com uma boina inseparável na cabeça, gostava de dar sermões. Ao longo do tempo, sofreu problemas de vista. Ainda assim, optou por não enxergar bem a usar óculos. Mas nem precisava. Sentia um craque pelo cheiro. “Ele trabalhava no Botafogo com os infantojuvenis”, conta Juvenal, profissional do time campeão fluminense de 1948. “Era roupeiro e massagista do departamento de atletismo e ainda trazia para o clube grandes valores, bom olheiro que era.” Reza a lenda que jogava uma laranja aos pés dos candidatos a craque para então conferir seus talentos.

O maior jogador que descobriu foi Heleno de Freitas. O melhor, mas não o único. “Ele me achou na praia e me levou ao Botafogo”, conta Júnior, lateral que disputou as Copas do Mundo de 1982 e 1986 e hoje é comentarista de televisão.

A “imortalidade” de Neném Prancha foi moldada principalmente por causa das frases que teria cunhado. Entre suas pérolas mais famosas estão: “O goleiro deve dormir com a bola. Se for casado, dorme com as duas”; “Se macumba ganhasse jogo, o campeonato baiano terminaria sempre empatado”; “Se concentração fosse bom, o time da penitenciária seria o campeão”.

JOGADOR INDISPLICENTE
Contemporâneos e estudiosos garantem que certas frases nunca foram ditas por ele. O que se passou foi o seguinte: de tão querido, alguns de seus jogadores, como Sandro Moreyra, Lúcio Rangel e Sérgio Porto, ao se tornarem jornalistas, fizeram o possível para colocar Neném na mídia. João Saldanha, por exemplo, testava suas tiradas sensacionais divulgando-as como se fossem de autoria de Prancha. Muita gente chegou a achar que “o tal de Neném” jamais existiu e que era um personagem inventado pelo João Sem-Medo.

Aventa-se que Neném teria expressado que mau jogador é o “indisplicente”, mistura de indisciplinado com displicente. Também teria dito: “Bola tem que ser rasteira porque o couro vem da vaca e a vaca gosta de grama”. Outra frase atribuída a ele: “Goleiro é uma posição tão amaldiçoada que onde ele pisa nem grama nasce”.

Mas a sua suposta frase mais conhecida, “Pênalti é tão importante que deveria ser cobrado pelo presidente do clube”, não passa de folclore. Ronald Alzuguir, campeão na base do Botafogo sob o comando de Neném, um dia perguntou ao mestre se ele realmente havia cunhado a máxima. A resposta: “O que eu falei é que o pênalti é tão fácil que até o presidente pode bater”.

Não sejamos, porém, reféns das ditas verdades inquebrantáveis. Como apregoava Nelson Rodrigues, se os fatos provam o contrário, pior para os fatos. Tenha Neném Prancha dito ou não o que o mundo da bola endossa, no imaginário popular ele segue tendo cadeira perpétua. Do mundo real, porém, despediu-se em 1976. Numa casa de saúde no bairro de nome mais que amado, Botafogo, morreu de enfarte aos 69 anos. Pobre financeiramente, mas rico de mistérios. A carregar para sempre as verdades e lendas a seu respeito.

 

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