Sem pecado

A vagina foi às ruas nas lutas pelas liberdades civis a partir dos anos 50

por André Caramuru Aubert André Caramuru Aubert em

E teve sua vida muitíssimo melhorada em vários países. Descobriu-se, pasmem!, que ela podia até mesmo proporcionar prazer à mulher

  - Crédito: reprodução Gay men draw vaginas, The Book

 

Joseph Goebbels, o marqueteiro de Hitler, dizia que uma mentira repetida mil vezes virava verdade. Pois a vagina tem sofrido (entre outras coisas) exatamente disso. Desde os profetas sabidões, os criadores das grandes religiões, há alguns milhares de anos, não foram poucos os (homens, claro) que pretenderam controlar, que perseguiram,mutilaram e difamaram a vagina. Não teria sido infinitamente melhor um mundo onde vaginas e pênis tivessem vivido em harmonia, se completando, se divertindo, sem preconceitos e sem que alguém achasse (sim, o doutor Freud) que elas tinham inveja deles? 

O pior é que, mesmo que façamos piada sobre o tema e que os cintos de castidade sejam peças de museu, essas terríveis e nocivas besteiras não fazem parte do passado. Quem leu algum livro da escritora e ativista somali Ayaan Hirsi Ali, especialmente seu mais conhecido, Infi el (Companhia das Letras), sabe do que eu estou falando. Se você não leu, leia. As críticas de Ayaan ao islamismo em geral, e à mutilação genital em particular, renderam a ela uma fatwa, ou seja, uma sentença de morte emitida por um tribunal religioso que todo fi el tem não só o direito, mas a obrigação, de executar. Seu parceiro em alguns projetos, o cineasta Theo Van Gogh, foi morto em pleno dia, na rua, em Amsterdã, em 2004. 

O fato é que ainda hoje, em muitos lugares do mundo, meninas pré-adolescentes são submetidas à mutilação clitoriana, que tem como objetivo impedir que elas possam vir a sentir, por toda a vida, prazer sexual. Em não poucas vezes, como foi o caso de Ayaan, a “cirurgia” é realizada sem qualquer condição mínima de higiene ou anestesia. Para piorar, em nossos tempos pós-modernos e de revisão crítica da razão iluminista, tem gente por aí que admite (nos outros, claro) a prática como legítima manifestação de “multiculturalismo”. Ora, multiculturalismo é aceitar e festejar a diversidade, e não compactuar com barbaridades.

SEM PECADO

No Ocidente abandonamos, há algum tempo, as perseguições físicas à vagina. Mas as culturais, ou ideológicas, seguem fi rme. Valores passados de geração a geração por centenas de anos fi cam parecidos com “verdades naturais”, e são evidentemente difíceis de mudar. É inegável, por outro lado, que o quadro melhorou muito nas últimas décadas. A vagina foi às ruas nas lutas pelas liberdades civis e pelos direitos das minorias a partir da década de 50, e teve sua vida, pelo menos em alguns países e círculos sociais, muitíssimo melhorada. Foi estudada, passou a ser respeitada e aceitou-se a ideia de que ela não servia apenas para executar as duas etapas básicas da procriação: receber o sêmen e expelir o filho. Descobriu-se, pasmem!, que ela podia até mesmo proporcionar prazer para a mulher; que, no ato sexual, tudo ficava mais gostoso quando todos os envolvidos sentiam prazer; que, com a vagina, diálogo é melhor que monólogo; e, fi nalmente, algumas pessoas começaram a acreditar na ideia de que o prazer sexual (para homens e mulheres, e seja lá qual for a sua tribo) não é pecado.

Ainda estamos muito longe de um final feliz para essa história, se é que, diante do avanço de todos os tipos de fundamentalismo religioso dos últimos anos, algum dia chegaremos lá. Mas, como defendem os fundamentalistas, nós também precisamos de fé. E eu tenho fé que todo mundo vai ser muito mais feliz quando entender que, muito mais do que a coisa sagrada da mãe, a vagina é um pedaço divertido da namorada. Na vagina, mais do em qualquer outro lugar, cabe a antiga palavra de ordem: faça amor, não faça guerra.  

P.S. Um lado bom dessa história foi que, por conta do tema do mês da Trip, desde os meus 14 anos eu não passava tanto tempo pensando em vagina.

*André Caramuru Aubert, 52, é historiador, editor e autor do romance A vida nas montanhas. Seu e-mail é andre.aubert@hotmail.com

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