Faça a coisa certa
Spike Lee: "O Brasil é o lugar para se viver agora"
Spike Lee está fazendo um documentário sobre o Brasil. Entre uma caipirinha e outra, batemos um papo sobre a mudança em curso no nosso país, que segundo ele, é "o lugar para viver agora"
Lembro muito bem daquela tarde de domingo de 1989, quando fui ao cinema com meus primos assistir a Faça a coisa certa, filme que lançou mundialmente o diretor Spike Lee. Fiquei atordoado. O filme teve um impacto enorme na minha formação, não apenas por expor o abismo racial americano, mas também por apresentar ao mundo uma nova arte contemporânea engajada em forma de filme, em forma de música. “Fight the Power”, gritavam Chuck D e seu Public Enemy naquela trilha sonora de arrepiar.
Na época, ficava tentando fazer paralelos com o Brasil. Seria possível termos algum movimento daquele tipo por aqui? Será que alguém conseguiria criar tamanha comoção e denunciar com tanta ênfase alguns dos nossos problemas seculares? Toda essa inquietação em meio ao processo da primeira eleição direta para presidente da república depois da ditadura militar era muito estimulante. Assistir à vitória de Fernando Collor sobre Lula no segundo turno, depois de ver o filme de Spike Lee, não foi fácil. Mas o Brasil soube criar seus próprios movimentos e iniciar um processo de mudança bem particular. É muito interessante perceber o contexto histórico mais de 20 anos depois.
Quando meu telefone tocou em uma sexta-feira do mês passado e ouvi do amigo fotógrafo Jorge Bispo que Spike Lee estava no Rio e procurava alguma coisa bacana para fazer à noite, a lembrança daquela sensação de 1989 veio à tona. Algum tempo depois, já tomando a deliciosa caipirinha do Astor com o cara, estendemos um papo recheado de impressões pessoais e busca de compreensão sobre esse processo de mudança do país. Estar com uma pessoa tão significativa na mistura de arte e política é, para alguém como eu – que vive as dicotomias e interseções entre esses dois mundos –, uma experiência preciosa. Foram momentos especiais. O assunto durou até o Studio RJ abrir suas portas e seguirmos noite adentro. O papo foi tão bom que repetimos a dose de caipirinha e shows do Studio no sábado.
Spike Lee está fazendo um documentário sobre nosso país. Go, Brazil, go será lançado antes da Copa do Mundo. Para isso, ele está entrevistando e filmando muita gente. Vai contar a história do Brasil – que, segundo ele, é “o lugar para viver agora” – por meio da opinião de personagens que vivem e fazem nosso país. Como é viver em um lugar que está se tornando uma potência? Como é perceber essa mudança tão impressionante?
Spike falou com a presidenta Dilma, de quem gostou muito, com Lula, que segundo ele é uma das pessoas mais magnéticas que conheceu, com muitos artistas – como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Marisa Monte, Lázaro Ramos, Criolo –, com esportistas como Romário – a quem ele chama de “my man” –, Pelé, Neymar, Ronaldo. Visitou Vigário Geral, o AfroReggae, o Vidigal e o Engenhão. Como bom militante, foi à sessão do Supremo Tribunal Federal que julgou a questão das cotas raciais e ficou muito feliz com a aprovação. E foi apenas sua primeira viagem. Ainda estão previstas mais quatro vindas ao Brasil com direito a vários Carnavais e muitos personagens importantes.
Divisor de águas
Em cada papo que ele tem, sua lista de entrevistados aumenta. Spike vai sozinho aos lugares, sem megaestrutura ou segurança, e anota cada sugestão, deixando claro que tem um método bem pessoal de encontrar capilaridade nos assuntos e ir fundo nas entrevistas. Da minha parte sugeri que ele conhecesse o Cacique de Ramos, os projetos sociais do Capão Redondo, os blocos de rua do Carnaval do Rio e de Recife e que falasse também com Mano Brown e Marina Silva.
O cineasta que eu considerava modelo de engajamento em momentos mais difíceis do Brasil está aqui para falar da transformação do nosso país, e isso, por si, já é algo extraordinário. Tenho certeza de que esse filme será um divisor de águas na imagem do Brasil para o mundo.
Spike Lee é sério e crítico o suficiente para falar do Brasil como ele é, sem os ufanismos normais deste tempo de crescimento. E falar da maravilha do nosso país, considerando os desafios que tem pela frente, é com certeza a melhor forma que Spike Lee tem para seguir fazendo a coisa certa.
*ALÊ YOUSSEF, 36, é fundador e sócio do Studio SP e do Studio RJ, um dos fundadores do site Overmundo e presidente do bloco Acadêmicos do Baixo Augusta. Foi coordenador de Juventude da prefeitura de SP (2001-04). E-mail: ayoussef@trip.com.br/Twitter: @aleyoussef