Fabricio Pamplona: Não compre, plante

"O sonho de transformar o Brasil num grande exportador de derivados de cânhamo para uso medicinal segue vivo", escreve o cientista diante da decisão do STJ que muda as regras pro cultivo de cannabis

por Fabricio Pamplona em

A tão esperada votação do STJ (Superior Tribunal de Justiça) decidiu liberar o cultivo de cannabis para fins medicinais em solo nacional. Simples assim: vai poder plantar, minha gente. Não era isso que vocês tanto queriam?

É um avanço que promete mexer com a saúde pública, os pacientes e suas associações, a indústria farmacêutica e, claro, o jogo político, dado o potencial agroindustrial que o cânhamo representa. 

"O ano de 2024 vai fechar melhor que os mais otimistas pudessem prever para a Cannabis medicinal no Brasil" - Crédito: Unsplash

“Para quem depende da cannabis medicinal para ter saúde física ou mental, esse passo significa um respiro. A promessa é de que os preços das medicações caiam e de que o acesso seja facilitado – afinal, finalmente estamos falando de uma indústria completamente verticalizada no país, com menor dependência de insumos externos”

Pra quem esperava plantar em casa, nada muda. Quem quiser cultivar por conta própria vai continuar precisando de um habeas corpus preventivo e segue enfrentando um futuro incerto. A regulamentação, quando vier, se propõe a regulamentar a atividade de cultivo “industrial” do cânhamo e para uso exclusivamente medicinal. O principal foco é a extração de canabinoides para uso medicinal, particularmente o canabidiol (CBD), excluindo-se por ora as aplicações industriais do cânhamo, como fabricação de têxteis, alimentos e biocombustíveis.

“Para quem depende da Cannabis medicinal para ter saúde física ou mental, esse passo significa um respiro. - Crédito: Unsplash

As associações de pacientes são aquelas que bancaram a resistência quando o acesso era basicamente um luxo. Muitas operam há anos em uma área cinzenta, cultivando e distribuindo cannabis aos seus associados. Com a regulamentação em pauta, talvez possam atuar legalmente, com apoio e segurança jurídica, mas o risco de regras rigorosas demais também existe. Não dá pra saber se a ANVISA vai abraçá-las ou deixá-las à margem enquanto o mercado cresce para o setor farmacêutico e para as novas startups agrotechs que, aliás, já começaram a pipocar por aí.

Mas quem realmente pode virar protagonista nesse mercado são os produtores rurais. Os que já possuem terras, talvez com produções pouco lucrativas, podem se ver tentados a mudar para o cultivo de maconha. Os que ainda não possuem terras, mas já têm conhecimento, vulgo os cultivadores, podem se ver tentados em começar grandes plantações, com fornecimento já comprometido com as empresas aderentes à RDC 327, que permite a fabricação de canabinoides no Brasil.

A regulamentação, quando vier, se propõe a regulamentar a atividade de cultivo “industrial” do cânhamo e para uso exclusivamente medicinal. - Crédito: Alex Batista

Há ainda uma outra classe: os que já cultivam maconha em larga escala, os traficantes, que de repente podem deixar de ser perseguidos e serem incentivados a continuar produzindo de maneira legal. Seria uma doideira, e, na verdade, esse é potencialmente o maior ponto de argumentação dos contrários: a potencial legitimação do tráfico de drogas. 

Eu, pessoalmente, acho que não vai acontecer. As regras da Anvisa serão tão rígidas que basicamente só cultivos altamente controlados poderão ser realizados. E aí, bem, quem sabe o tiro sairá pela culatra e vai continuar sendo mais viável importar extrato pronto da Colômbia ou Estados Unidos… A ver. Por ora a expectativa de uma regulamentação propõe acabar com o último gap que falta para verticalizar a indústria nacional. O povo quer ver a planta na terra e o extrato verde e pegajoso rico em canabinoides sendo feito aqui mesmo no Brasil. Será a corrida do ouro verde, como aconteceu no Colorado de 10 anos atrás? Eu acho que não, o timing ideal já passou.

O principal foco é a extração de canabinoides para uso medicinal, particularmente o canabidiol (CBD), excluindo-se por hora as aplicações industriais do cânhamo, como fabricação de têxteis, alimentos e biocombustíveis. - Crédito: Unsplash

Contudo, a ideia de transformar o Brasil num grande exportador de derivados de cânhamo para uso medicinal ainda está viva no horizonte dos mais sonhadores. Somos um país com o clima ideal, temos conhecimento, temos ciência, genética, agroindústria, mercado interno, tudo para nos tornarmos uma potência latino-americana e, quem sabe, mundial. Resta saber se vamos conseguir correr atrás e, finalmente, estruturar essa indústria como um mercado robusto, acessível e voltado para o futuro.

No meio disso tudo, ainda existe a barreira do preconceito. A regulamentação precisa andar lado a lado com a educação e desmistificação do uso da cannabis medicinal, que ainda sofre um peso moral desproporcional. Mesmo com o potencial terapêutico já comprovado, muitos ainda enxergam a cannabis sob o velho estigma. Superar essa mentalidade é fundamental para que o mercado se desenvolva de maneira ampla e beneficie quem realmente precisa. 

A ideia de transformar o Brasil num grande exportador de derivados de cânhamo para uso medicinal ainda está viva. Somos um país com o clima ideal, temos know how, temos ciência, genética, agroindústria, mercado interno. - Crédito: Freepik

Não há tricoma ou perfume de planta que consiga seduzir uma mente já envenenada pelo viés proibicionista que tanto travou esse processo. A decisão do STJ abriu as portas para um novo setor, mas muita coisa ainda depende de regulamentações futuras, de interesse político e de um público que entenda que o potencial do cânhamo é superior ao do próprio CBD. Uma dúvida: será que veremos no país a distinção dos tipos de planta por teores de canabinoides, como temos internacionalmente?

Para os que abraçarem a causa, o cânhamo medicinal pode ser uma aposta lucrativa e politicamente rentável, atendendo à demanda medicinal crescente e ainda fortalecer o agronegócio com as diversas outras vertentes que esta commodity proporciona. E sim, isso tudo tem apelo eleitoral forte, especialmente com o PL 399/15 parado no Congresso há quase uma década esperando para ser aprovado. Uma lei traria a segurança jurídica que atrairia os grandes investimentos para realizar todo o potencial que mencionei acima.

Já faz um tempinho que exista, mas de verdade a indústria está só começando, e ainda precisamos esperar pelo menos meio ano para conhecer o texto regulamentar que será proposto pela Anvisa, e fazer com que a frase “não compre, plante” se torne realidade — para a saúde, para a economia e para a justiça social. O tempo agora é nosso aliado.

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