Existe racismo no Brasil?
Algumas respostas para essa incômoda pergunta
Cadê os negros?
Emanoel de Araújo, 73 anos, diretor do Museu Afro Brasil
Sim, há racismo. No Brasil, há 51% de população declarada como negra. É só observar se essa distribuição populacional se repete nas profissões de prestígio – entre jornalistas, apresentadores de TV e rádio, médicos, advogados, dentistas, artistas, arquitetos, advogados, juízes. Quando assistimos à TV brasileira, parece que estamos em outro país. A população negra desaparece. A situação de não representação também pode ser percebida na não presença proporcional de deputados, senadores, secretários de Estado, ministros da república. Na educação escolar, as crianças pobres negras têm 20% a menos de anos de escolaridade que as crianças pobres brancas. Por mais que se saiba que só existe uma raça, a raça humana, o racismo existe e ainda se tem a crença de que os negros são inferiores aos brancos. A história brasileira está repleta de importantes personagens negros que são esquecidos, ocultados ou embranquecidos. A memória nacional é branca e perversa.
Cabelo ruim não existe
Nelson Triunfo, 59 anos, dançarino
O racismo não é tão forte como era antes, mas não dá pra dizer que não existe. Não só o racismo, como também outros preconceitos, como o de classe, o de origem – eu que sou nordestino sei bem disso –, o musical, o de orientação sexual e tantos outros. Mas o maior problema do racismo no Brasil é que ele é mentiroso, enrustido, covarde. O racista age de forma racista e nunca assume seu racismo. Quando quer agradar, chama um negro de moreninho. Isso é racismo enrustido. É preciso ter orgulho de quem você é. Cansei de ouvir que meu cabelo é ruim, que cabelo de negro é ruim. Tudo depende do ponto de vista: para fazer um penteado black power como o meu, que é um símbolo cultural, o cabelo liso é que é cabelo ruim. Então não existe cabelo ruim, existem cabelos diferentes.
Amarildos, Vinícius e Cláudias
Silvio Humberto dos Passos Cunha, 51 anos, doutor em economia pela Unicamp. Vereador (PSB), preside a Comissão de Cultura, Esporte e Lazer e integra a Comissão de Reparação da Câmara Municipal de Salvador
Existe racismo no Brasil e o próprio Estado reconhece isso, a partir do momento que sua legislação criminaliza essa prática. Esse processo de reconhecimento tem seu protagonista: o Movimento Negro brasileiro e suas diversas entidades. As estatísticas e o cotidiano revelam que nós não somos uma democracia racial. O racismo estrutura as relações de poder neste país. As relações sociais, econômicas, todas elas são estruturadas com base no racismo.
É evidente que existe um avanço no debate e em ações voltadas para a promoção da igualdade racial: as ações afirmativas na educação, e mais recentemente a aprovação do sistema de cotas no serviço público, a existência dos órgãos federais, estaduais e municipais dentro das estruturas de governo, o fato de se discutir a questão racial durante o ano inteiro, para além das datas comemorativas. Vivenciamos hoje o velho racismo e o novo racismo. O velho racismo se faz presente nesse extermínio da juventude negra, nos casos dos Amarildos, Vinícius (psicólogo e ator preso por engano, acusado de cometer um roubo) e Cláudias (auxiliar de serviços gerais que, depois de assassinada por policiais militares, teve o seu corpo arrastado por mais de 250 metros). Quantos mais?
“Vivenciamos hoje o velho racismo e o novo racismo. O velho racismo se faz presente nesse extermínio da juventude negra”
Imaginemos uma sociedade sem racismo! Ser humano pleno, eu acredito. É por isso que trabalhamos diuturnamente, de forma incansável para esse mundo melhor. Fazendo pontes, acreditando no papel estratégico da diversidade. Cabe lembrar o ensinamento de Mandela: “É preciso crer para ver”. Mas, no nosso cotidiano, não podemos ter ilusões, o racismo estrutura poder. Ao estruturar poder mantém as hierarquias, assegura o status quo. O racismo é algo muito complexo, presente em todos os espaços, tanto no ambiente público como no privado. Parafraseando Steve Biko, precisamos ultrapassar a última fronteira, devolver ao homem branco a sua humanidade.
“Preconceito de ter preconceito”
Lilia Schwarcz, 57 anos, antropóloga e autora de dois livros sobre o tema da edição: Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no fim do século XIX e O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e pensamento racial no Brasil: 1870-1930, ambos da Companhia das Letras
Não há país no mundo que não tenha racismo, igualmente perverso e deletério em qualquer lugar. Mas cada país tem formas diferentes de pensar o racismo. No nosso caso, temos uma espécie de “preconceito de ter preconceito” – a frase é do Florestan Fernandes, que escreveu sobre isso nas décadas de 60 e 70. Os brasileiros negam sistematicamente o fato de terem racismo. Na USP, em 1988, por ocasião do centenário da Abolição, fizemos uma pesquisa na qual perguntamos: “Você tem preconceito?” e “Você conhece alguém que tem preconceito?”. Para a primeira, 96% da população disse não. Para a segunda, 99% disse sim. Conclusão: todo brasileiro se sente uma ilha de democracia racial, cercada de racistas por todos os lados.
O Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Foi o país que mais importou escravos – três quartos dos escravos vieram para cá – e foi o país em que a escravidão moderna durou mais, em todo o território nacional. Não saímos dessas marcas de uma maneira leve.
"Todo brasileiro se sente uma ilha de democracia racial, cercada de racistas por todos os lados"
O fato de a Abolição ter sido feita sem uma luta, como se fosse um ato, e um ato curto, também diz muito sobre isso ainda hoje. A Abolição é uma lei curta, que não pensa em ressarcimentos, não pensa em nada. Além disso, o Brasil só foi entrar em uma discussão sobre direitos civis – sobre negros, mulheres, ecologia – nos anos 70.
A partir dessa época, com a criação do Movimento Negro Unificado, as pessoas passaram a se colocar sobre o tema. E o fato de as pessoas discutirem é da maior importância. Lima Barreto já dizia: a pior censura é o silêncio.
Cotas, sim
Luislinda Valois, 72 anos, primeira juíza negra do Brasil
As pessoas precisam assumir, não trabalhar com esse “racismo jogado para o outro”. A conscientização individual é básica. Até pouco tempo, as crianças brasileiras não tinham história da África na escola. Como fica uma criança negra, que só estuda França e Inglaterra, e não se reconhece lá? Sou a favor de políticas autoafirmativas. Não deveria haver uma maneira apenas de adotar e pensar cotas, mas pensar em várias políticas de introdução dessa população. Considerar a importância da história é o que precisamos. Pensar em uma cidadania mais plena é algo que nos falta. Nossos valores republicanos andam falhados.
Vai lá Luislinda Valois também colaborou com a Tpm deste mês
A cor da miséria
MV Bill, 40 anos, rapper e ativista político
No Brasil existem 780 secretarias municipais, estaduais e federais de combate ao racismo. Instituições públicas com verbas públicas. Isso responde parte da pergunta. O problema é que no Brasil os racistas não se manifestam publicamente. Eles não se acham racistas, inclusive. Fica difícil identificá-los e combatê-los. Se você perguntar se existe racismo, as pessoas dirão que sim. Se você perguntar quem é racista, as pessoas se calarão. Mas existe! Quem sofre as consequências do racismo conhece bem a dor que é ser discriminado.
Quando nos referimos às pessoas como “um homem negro”, “a modelo negra”, “um presidente negro”, estamos reforçando o preconceito. Existem profissões mais populares às quais os negros têm mais acesso. Mas, se ele quiser jogar golfe, por exemplo, vai encontrar formas mais agressivas de preconceito. O preconceito está em toda parte, sobretudo na favela. Quando uma criança chama outra de macaco na escola, é porque nutre a ideia de superioridade pela cor: apesar de ela ser pobre como a outra, uma tem a cor do poder e a outra a cor da miséria. E as duas têm plena consciência disso.