Existe preconceito de cor no Brasil ainda?
Reportagem da Realidade mostrava, em 67, como negro e branco eram tratados. Será que mudou?
Uma reportagem da icônica revista Realidade mostrava, em 1967, como um negro e um branco eram tratados ao passar pelas mesmas situações. Cinco décadas depois, a Trip se inspira na experiência para investigar: Será que alguma coisa mudou?
"Vivi toda a infância e adolescência ouvindo e aprendendo que o negro era um homem inferior. Na escola, em casa, na rua, meus pais, os professores e meus amigos sempre atribuíam aos negros maus sentimentos e atitudes negativas. Usavam os negros para coagir as crianças a não fazer travessuras. Ouvi muitas vezes a ameaça: ‘Olha que eu chamo o preto pra te levar!’.”
Assim começa uma das reportagens mais marcantes da Realidade, a revista que foi extinta em 1976, mas é cultuada até hoje como uma das melhores que o jornalismo brasileiro produziu. Publicado em outubro de 1967 – em uma edição que traçava paralelos entre os conflitos raciais que borbulhavam nos Estados Unidos e a relação do povo brasileiro com esse assunto – o texto de Narciso Kalili e Odacir de Mattos mostrava a que vinha logo no título: “Existe preconceito de cor no Brasil”.
A reportagem era uma experiência de fôlego: Kalili, branco, e Mattos, negro (ambos já falecidos), junto com dois fotógrafos, Luigi Mamprim e Geraldo Mori, passaram por seis cidades brasileiras registrando como dois homens de cor de pele diferentes eram tratados nas mais variadas situações do cotidiano – procurar quarto de hotel, alugar apartamento, buscar escola para os filhos, ser atendido em hospital, comer em restaurantes, ir a boates... ou simplesmente andar abraçado com uma parceira de outra cor (Narciso com uma modelo negra, Odacir com uma branca).
Os relatos não têm o rigor de uma experiência científica. É apenas experiência humana
Em quase todos os testes, o tratamento dado a Mattos foi diferente. O hotel não tinha vagas – mas elas milagrosamente surgiam quando o cliente era Kalili –, o apartamento mudava de preço, a escola ficava inacessível e assim por diante. Só quando estavam com as falsas namoradas é que as reações foram semelhantes para ambos: muito espanto e desaprovação.
Inspirada na reportagem, a Trip simulou a experiência, em menor escala: Jeferson De, cineasta, 42 anos, negro, e Endrigo Chiri, 34, jornalista, branco, foram convidados a passar um dia vivendo situações parecidas em São Paulo.
Como o próprio autor do texto original frisava, os relatos daqueles dias não tinham o rigor de uma pesquisa científica. “É apenas experiência humana.” Nossa versão também não tem a pretensão de provar coisa alguma. Mas traz a sensação de que, quase 50 anos depois, não mudamos tanto assim.
Antes de começar, Jeferson avisou: o que queríamos testar, ele já vivia todos os dias. Nascido no Vale do Paraíba, o diretor de filmes como Bróder (2010) e Celulares (em fase de produção) acredita que grande parte de nossa mal resolvida “abolição” ainda hoje esconde muitas tensões. “Confesso que não é fácil reviver dores e frustrações. Tento me tranquilizar pensando na frase ‘... a cor da pele, foda-se!’, como diz o vocalista Falcão, d’O Rappa, em ‘O homem amarelo’.
O experimento da Trip excluiu a questão dos casais inter-raciais, mas ela faz parte da vida de Jeferson, casado com Cristiane, que é branca. “Em vários ambientes isso ainda é estranho. Assim como o fato de uma mulher branca ter um filho negro”, diz.
O rolezinho de nossos protagonistas teve como cenário lugares onde uma pessoa negra em geral só é encontrada, como diz Jeferson, de três formas: para servir, pedir ou ameaçar. Ele e Endrigo estavam lá para observar. A dupla de hoje não encontrou a agressividade escancarada da dupla que saiu pelo Brasil em 1967. As impressões de ambos estão nos relatos a seguir.