Eus moços e eus velhos
Um encontro com Jorge Luis Borges
Há muitos anos li um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges que me marcou profundamente. A história, cujo título é O Outro, narra um estranho encontro ocorrido às margens do rio Charles, em Boston.
O já ancião Borges está sentado em um banco e um jovem se senta ao seu lado. O velho Borges percebe que o rapaz é ele mesmo quando jovem. Os dois Borges começam a conversar, mas o tempo que os separa - um olha para o passado, o outro para o futuro - torna o diálogo difícil.
O velho, sábio mas cansado, refuta a força burra e cega da juventude. O jovem idealista, mas arrogante, rejeita o cinismo brocha da velhice. Num certo momento o jovem Borges, incrédulo, se vira para o velho Borges e diz algo mais ou menos assim: "Mas se você é mesmo eu quando envelhecer por que será que você não se lembra de ter na juventude encontrado um velho que era você mesmo aqui neste banco?".
Os dois pensam estar sonhando, um com o outro.
Em busca do tempo perdido
Ultimamente tenho mandado e recebido muitos e-mails para gente que desapareceu da minha vida há décadas: um amigo das peladas no pátio do prédio que hoje é gerente de uma fábrica de cadeados, um ortodontista que um dia foi o maluco que me apresentou ao primeiro baseado, no Guarujá, o dono da sorveteria onde trabalhei em Nova York que foi largado pela mulher e está desempregado, uma colega de classe gostosérrima que nunca quis dar para mim, o guitarrista do meu conjunto de rock que mora em Portugal etc.
Todos mais ou menos quarentões, todos ávidos por lembrar e por saber se são lembrados. Todos loucos por dizer: "Lembra, eu era assim e você era assado, fizemos isso aqui e depois aquilo acolá". Somos Borges velhos sentados na frente de um rio qualquer. Talvez sonhando.
Mas em 1984 eu encontrei o velho, de verdade. Eu tinha 20 anos e morava em Nova York. Minha mãe veio me visitar e eu a levei ao Metropolitan Museum. Na galeria dedicada à egiptologia, no meio de múmias e sarcófagos, de repente me deparo com o próprio Jorge Luis Borges, frágil, cego e paralítico. A sua cadeira de rodas era empurrada por uma senhora japonesa, Maria Kodama - em 1986, poucas semanas antes de morrer, ele viria a esposá-la.
Ensaio sobre a cegueira
Comecei a segui-los. A senhora japonesa descrevia tudo o que via no museu. O mestre ouvia com extrema atenção, seguindo com seus olhos cegos. Minha mãe insistiu que eu fosse falar com ele. Acabei não resistindo e me apresentei, tímido, falando em inglês. Disse que tinha lido muitos de seus livros e que era seu fã. Ele respondeu com absurda modéstia: "É mesmo?", como se ele fosse um desconhecido.
Ele reparou no meu sotaque, segurou a minha mão e perguntou de onde eu era. "Do Brasil", respondi. Ele perguntou se eu gostava de poesia. Intimidado, eu disse que sim, mas que lera pouco. Ele recitou um poema de Fernando Pessoa em português.
A memória desse encontro parece um sonho, ou um conto que eu mesmo escrevi tentando imitar o Borges. Hoje, aqui em Londres, sem conseguir lembrar qual foi o poema, consulto as obras completas de Fernando Pessoa. Abro uma página a esmo e me espanto com a coincidência do primeiro verso que encontro:
"Ah, sempre no curso
leve do tempo pesado/
A mesma forma de viver/
O mesmo modo inútil
de estar enganado/
Por crer ou descrer!"