Eu te amo, bicho

A paixão dos brasileiros pelos seus animais e a relação de amor entre dono e pet

por Nina Lemos em

Gastamos mais de R$ 10 bilhões de por ano com nossos bichos e até deixamos de ter
filhos para nos dedicar mais a eles. o que está por trás dessa estranha relação
de amor e devoção?

Cohab de Itaquera, periferia de São Paulo. O apartamento tem 30 m2. A funcionária pública aposentada Neide Nobre, 61 anos, mora ali para cuidar de sua mãe idosa. Mas quem manda na casa não são elas, e sim os cinco cachorros e cinco gatos retirados por Neide da rua. Eles parecem ocupar cada centímetro do imóvel, fica difícil andar sem tropeçar nos bichos. Nada que incomode Neide. “Aqui é tudo para eles.” O amor da aposentada pelos animais faz com que ela seja chamada no bairro de “louca”. Um amor que sai caro. Neide toma multas do condomínio pelo número de animais e gasta mais cerca de R$ 600 com eles por mês. Mais da metade de sua aposentadoria.

Neide é o que se convencionou chamar de “louca dos gatos”, ou “louca dos bichos”, aquelas que incomodam a vizinhança com a quantidade de miados, latidos ou odores vindos de sua porta. Como uma na Vila Mariana, bairro de classe média de São Paulo. Ali, a jornalista Luiza Pinheiro, 32 anos, também divide um apartamento com a mãe. E mais quatro gatos e um cachorro. Assim como Neide, é chamada de louca, mas capitalizou isso com ironia, e criou o blog A louca dos gatos, onde conta as aventuras de seus bichanos e dá dicas de como tratar os animais. Ela tem mais em comum com a aposentada de Itaquera do que o fato de ter muitos bichos e a insana alcunha.

As duas engrossam números que fazem o Brasil ser o segundo maior mercado para produtos de pets do mundo (só perdemos para os Estados Unidos). O mercado movimenta mais de R$ 10 bilhões por ano. Entre os pertencentes à classe A, 52% têm pets. Na classe B, esse número é de 25%, já na classe C, a estatística dá meia-volta e o número sobe para 36%. Ter um animal e tratá-lo como “gente” deixou de ser privilégio de madame.

Na mais modesta Itaquera pode não ter banho de ofurô ou semanas de moda como nas pet shops paulistanas mais finas, mas segue sendo fácil esbarrar com três lojas do tipo por quarteirão – todas com roupinhas, sabonetes e outras “frescurinhas” para bichos. Neide, por exemplo, conta que deixa de cortar o cabelo para comprar um xampu especial por R$ 30 para uma de suas cachorras, que tem alergia.

Tanta dedicação tem algumas explicações. “Os animais são previsíveis. Não nos enganam, não têm o dom da mentira”, explica o psicanalista Mario Corso. Isso faz com que esse amor, como dizem todos os donos de animais, “seja puro”. E incondicional. Eles não nos cobram perfeição.

A escravidão está embutida em muitas relações de amor entre donos e animais. Nina é escrava do cachorro otto, e aceita sem reclamar. “Ele faz coisas que eu jamais perdoaria se uma pessoa fizesse”

“Sabe o que acontece com os bichos, coitados? Eles dependem do ser humano para tudo. Então, para eles, a gente é Deus”, diz Neide. Do outro lado da cidade, no “diferenciado” bairro de Higienópolis, a roteirista Nina Crintz, 33 anos, assina embaixo. A “mãe” do buldog francês Otto, 1 ano, sente que “para ele eu sou Deus. Se eu não colocar comida, ele não come. Depende totalmente de mim para ter uma vida legal”. E Nina se esforça. “Fico o tempo todo tentando animá-lo. Dou até chocolate belga para ele, porque penso, que se não for eu, ele nunca vai provar.”

Bancar a divindade através dos bichos de estimação, segundo Mario Corso, é coisa antiga, de muito antes da atual indústria de pets. “No livro Caninos Brancos, do romancista Jack London, um índio aconselha o personagem a não dar muita confiança para o cão, pois ele nos veria como um Deus e, por isso, nós deveríamos tratá-lo com a distância que essa circunstância sagrada pede. As pessoas não levam esse conselho a sério. Por isso, começam como deuses e terminam escravos voluntários de seus pets.”

Deuses ou escravos

Fato: escravidão está embutida em muitas relações de amor entre donos e animais. Nina, a roteirista, é escrava do cachorro Otto. E aceita sem reclamar. “Ele faz coisas que eu jamais perdoaria se alguma pessoa fizesse.” Exemplos: ele destruiu todos os pés palitos dos móveis garimpados por Nina ao longo da vida, quebrou sua impressora, acabou com uma bolsa nova comprada em Nova York e por aí vai.

“Eu não consigo ficar com raiva dele porque sei que não sabe que é errado. E sinto que ele depende só de mim.” Nina, que se considera “retraída”, que não gosta de falar com estranhos na rua, passou a ser simpática – quando está com o cachorro. “O Otto gosta de brincar com os outros bichos, então, sou obrigada a socializar com os donos deles.”

Tanto esforço tem muitos motivos. Um deles é que Otto, segundo a dona, tem cara de quem sofre de crise existencial. “Ele fica com cara de tédio, aí começo a querer animá-lo.” Ela conta isso rindo, porque tem consciência de que é, ela mesma, uma entediada com o mundo.

“Sou tão apegado aos meus bichos porque não tenho filho, acho que a gente substitui”, diz o estilista Marcelo Sommer. A “paternidade” faz com que Marcelo afirme, como um pai de adolescentes, que os cães Yuri e Bowie “viraram um problema em sua vida”. “Eles são grandes e me dão muito trabalho, custam muito dinheiro, são uma crise eterna na minha vida.” Apesar disso ele não pensa, de forma alguma, em viver sem cachorro. “Não consigo.” Sim, bicho de estimação gera dependência. Todos os entrevistados afirmaram ser incapazes de viver sem seus animais.

Meu cachorro, meu filho

O lugar-comum de que os bichos viram filhos faz sentido, diz o psicanalista Mario Corso. “O amor aos animais é parecido com o aos filhos, afinal, trata-se de uma dedicação a um ser dependente e que precisa ser educado. Mas não acredito no amor gratuito, sem interesse. Os amantes dos animais não se questionam sobre os motivos de encherem sua vida de gatos. O que eles desconhecem é que isso tem a ver com a sensação de desamparo deles, que se projetou no animal.” Fora isso, claro, bicho é uma espécie de “filho” diferente, já que eles não crescem e vão seguir sua própria vida. E têm menos vontade própria que os seres humanos.

“eles não se questionam sobre o motivo de encherem sua vida de gatos. O que eles desconhecem é que isso tem a ver com a sensação de desamparo deles, que se projetou no animal”

Luiza, a louca dos gatos, tem outro temor. Mais específico – e inevitável: “Se eu morrer, o que vão fazer com meus gatos?”. Isso faz com que ela não se imagine como uma clássica louca dos gatos, a velhinha que vive cercada por bichanos. “Nunca vou fazer isso. É perigoso. As pessoas morrem e depois jogam todos os animais na rua.”

“A humanidade é muito cruel”, ela avalia, “não quero ter filhos em um mundo onde as pessoas tratam os bichos assim.” Atenção para a inversão. Tratamos bichos como filhos. E então deixamos de ter filhos (sim, somos complicados). Corso tem uma explicação. “Geralmente quem se dedica aos animais vem de um desencanto com os humanos, e se reconhece como bom e virtuoso. O mundo é que não seria bom. Logo, melhor não investir mais nesses ingratos humanos e se dedicar aos seres de quatro patas.”

Dona Bernardete de Oliveira, “mãe” de quatro cachorros, abriu o pet shop TJ, em Itaquera. Um cachorro mora na parte de baixo da casa. Os outros três, mais dois papagaios, vivem com a filha e o genro de Bernardete em um cômodo construído no segundo andar da casa. Ela explica esse amor meio louco. “Antes a gente achava que o bicho tinha que servir a gente. O cachorro era para guardar a casa. O gato era para matar rato. Agora, temos porque gostamos e assim eles passaram a fazer parte da família.” Pelo jeito, as “funções” dos bichos de estimação só aumentaram. Eles não guardam mais a casa, mas são “filho”, servem de projeção para nossas neuroses e até de motivo para não lidarmos com os problemas dos humanos. Não é pouco, não.

O animal no divã

por Jacob Pinheiro Goldberg*

Quando observamos a interação pessoa-animal, são dois entes da natureza na sua proximidade e no seu distanciamento que devem merecer análise. São inúmeros e o mais variados possível os territórios em que o ser humano e o ser animal coabitam a natureza e a civilização. Vejamos algumas dessas múltiplas dimensões:

1 O animal enquanto alimento carnívoro básico de quase toda a população mundial, visto como “natural” pela maioria e criminoso por concepções vegetarianas e por certas religiões. O medo, o sofrimento, a dor do boi no matadouro. E a “caça” como esporte aristocrático, com rituais e sofisticação.

2 A contrapartida, raríssima, do animal selvagem que ataca e mata o ser humano.

3 A sublimação, através da arte (cinema, literatura, contraponto musical), das emoções que envolvem esses intercâmbios.

4 A domesticação do animal, transformado em uma espécie de “objeto desejado”, privilégio e vítima de “sujeito desejante”, seu proprietário e amante, com todas as derivações do leque conflituoso de afetos – paixão, medo, ciúme, raiva, saudade, nostalgia. A eleição do cãozinho, do gatinho, do pássaro e de outros animais como o “estranho íntimo” da solidão do século 21. Suas casinhas, lojas, hospitais, cemitérios substituindo o papel da criança.

5 O animal, cobaia de laboratório, prisioneiro de ciência de experimentação para a medicina.

6 A zoofilia, anotada sexualmente em regiões do interior geográfico, usando galinha, égua e cães.

Sem dúvida o desafio da compreensão dos limites da inteligência e da sensibilidade dos animais adentra até o campo jurídico, como agente de direitos, nos leva a fronteiras sugestivas de mergulho na alteridade que nos remete à nossa própria interiorização. A propósito escrevi um poema, traduzido para inúmeras línguas e publicado inclusive na revista Kurara, da Universidade de Cracóvia:

O cavalo e eu

Extasiado, fiquei olhando os
olhos do cavalo. Mas enxergava
mais o êxtase que os seus olhos.
O cavalo, porém, me olhava e
(parece) me enxergava.
E assim, ficamos tão perto nos
olhando, e, no entretanto, as
infinitas distâncias,
sei que jamais o enxergaria.
E ele, o cavalo, quem sabe,
pudesse, realmente, me enxergar,
como eu mesmo, jamais me veria.
Neste universo do Imaginário e Simbólico
que vai do altruísmo até o sadomasoquismo.

* Jacob Pinheiro Goldberg é doutor em psicologia, escritor – autor, entre outros, de Magia Wygnania – e pai de Suzana, aluna de medicina veterinária

Crédito: Alexia Santi
Crédito: Alexia Santi
Crédito: Alexia Santi
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